MUNCHAUSEN: A Literatura salva vidas
Texto publicado por Jorge Alberto Salton no livro Questões de Arte e Comunicação. Organizado por Cilene Maria Potrich e Hercílio Fraga de Quevedo (UPF Editora)
Ajude-mo-nos uns aos outros
Eça de Queirós (1845 – 1900)
No Lago del Dique em La Rioja, na Peruggia de cima, na Universidade de Moscou e na Universidade de Akron, em Ohio, e em já não sei em quantos lugares mais, conversei com colegas perplexos frente a um dos comportamentos mais estranhos encontradas em nossos companheiros de viagem na caravana humana. Determinados pacientes revelam uma forma singular de conduta autodestrutiva: simulam enfermidades físicas, buscando atrair sobre si condutas médicas agressivas.
Para se chegar a La Rioja, roda-se durante seis horas a partir de Córdoba, por uma imensa planície de areia, cactos, pontes sobre leitos de rios secos, sem povoação, sem nada ao longo da rodovia. No final do deserto e no início das montanhas pré-andinas, encontra-se uma cidade de pouco mais de cem mil habitantes, que possui uma faculdade de medicina e lida, como em todos os recantos do mundo, com seres que adoecem das mais variadas maneiras. Foi no Lago del Dique, reservatório situado por entre as montanhas e alimentado por riachos dos degelos andinos, que um colega argentino me confessou que, graças ao nome “Münchausen”, aprendera a reconhecer em seus pacientes a presença do fenômeno inusitado de buscar atrair sobre si procedimentos médicos destrutivos.
Enquanto conversávamos, víamos, em plano inferior, La Rioja e aquela interminável planície de areia. Em plano superior, observávamos a paisagem de imensas pedras desordenadas, quietas, impassíveis. Lembrei Eça de Queirós: “Formamos uma imensa caravana que marcha confusamente para o nada. Cerca-nos uma natureza indiferente, impassível, que não nos entende, nem sequer nos vê e de que não podemos esperar socorro nem consolação”. Portanto, conclui nosso escritor: “Ajude-mo-nos uns aos outros”. Homens e mulheres da literatura ajudam homens e mulheres das faculdades de medicina, dos hospitais, dos ambulatórios de todas as partes do planeta.
Em Havana, o colega Carlos Acosta Nodal, psiquiatra experiente, após ouvir-me apresentar um artigo sobre Síndrome de Münchausen no Congresso Nacional de Psiquiatria, aproximou-se de mim e me convidou a visitá-lo em sua casa na Zona de la Rampa. Também, disse-me ele, conhecera, quando ainda um jovem médico, este quadro devido ao nome “Münchausen” e ao seu interesse pela literatura.
Como o acesso a médico era muito fácil na ilha, também se facilitaria o aparecimento deste tipo singular de conduta autodestrutiva. Conclusão: meu artigo foi publicado na única revista de psiquiatria do país, a Revista do Hospital Psiquiátrico de Havana. Em 1843, um médico chamado Gavin observou pacientes que simulavam sintomas e que experimentavam incomensurável gratificação com os cuidados médicos hospitalares. Em 1911, Dieulafoy, clínico francês, relatou um caso com tais características, sugerindo a existência de uma síndrome a que denominou “patomimia”.
Entretanto, não há dúvida, foi o médico inglês Richard Asher que, em 1951, conseguiu chamar definitivamente a atenção da classe médica para este terrível fenômeno ao publicar um artigo com relato de três casos numa famosa revista médica: “Aqui está descrita uma síndrome comum, que muitos médicos já viram, mas sobre a qual muito pouco foi escrito” (Münchausen`s Syndrone, Lancet, 1:339-41, 1951, p. 339). Asher, bom conhecedor de literatura, teve a felicidade de propor o nome “Síndrome de Münchausen” e, desde então, ficaram fáceis o ensino e a divulgação entre os profissionais da saúde. Ninguém duvida de que, se não fosse a escolha desta denominação, muitas e muitas vidas não teriam sido salvas.
Münchausen foi um barão alemão – Hieronymus Karl Friedrich von Munchausen (1720-1797) – conhecido pelas histórias humorísticas e agressivas que inventava. Inspirados nele, vários escritores criaram histórias de ficção sobre um viajante que passava de bar em bar relatando fatos fantásticos e mentirosos, à semelhança dos pacientes que perambulam de hospital em hospital dramatizando enfermidades artificiais. Entre tantos ficcionistas, destacam-se Gottfried August Bürger (1747 - 1794) e, especialmente, Rudof Erich Raspe (1736 - 1794).
Despertados pela denominação “Münchausen” dada por Asher, muitos médicos em diferentes países começaram a relatar casos desta síndrome. As denominações, até então, eram variadas, o que dificultava a divulgação e o estudo: “nômades de hospital”, “adição hospitalar”, “pacientes peregrinos”, etc. Todos aplaudiram e adotaram o novo nome.
Em 1977, Roy Meadow, pediatra em Leeds, Inglaterra, professor no St. Jame’s University Hospital, publicou um artigo na revista Lancet chamando a atenção sobre a Síndrome de Munchausen em mães que falsificam sintomas em seus filhos pequenos para, através deles, sentirem-se envolvidas em cuidados médicos. Burman e Stevens propuseram a denominação “Síndrome de Polle” numa alusão a um suposto filho do segundo casamento do barão de Münchausen, chamado “Polle”, que morreu antes de completar um ano de idade. Meadow contestou esta designação. Segundo suas investigações, o barão, depois do falecimento de sua primeira esposa, casara-se com Bernhardine von Brunn, uma jovem de somente dezessete anos. Münchausen contava, na ocasião, com setenta e quatro anos. Tiveram somente uma filha, Maria Wilhelmina, da qual o barão não acreditava que fosse o pai. Polle, em realidade, era o nome de uma pequena cidade alemã em cuja igreja luterana a menina foi batizada.
A Síndrome de Münchausen foi incorporada à Classificação Internacional das Doenças organizada pela Organização Mundial da Saúde, que está atualmente na sua décima revisão (CID-10). Esta síndrome está colocada dentro do item “Outros Transtornos de Personalidade e de Comportamento em Adultos”. Mais especificamente (F68.1): Produção Intencional ou Invenção de Sintomas ou Incapacidades Físicas ou Psicológicas (Transtorno Factício).
O diagnóstico baseia-se na existência do ato de inventar sintomas repetida e constantemente na ausência de um transtorno, de doença ou de incapacidade física ou mental confirmada.
O paciente é muito convincente na simulação dos sintomas e os produz voluntariamente, tentando, assim, permanecer envolvido em atendimentos médicos. Porém, ele não tem consciência do motivo por que se sente compulsivamente atraído por andar às voltas com hospitais e profissionais da saúde.
Existem casos em que o paciente simula sintomas psiquiátricos, como alucinações, idéias delirantes ou sintomas da linha depressiva, com supostas idéias de suicídio. No passado, esses quadros eram mais descritos entre prisioneiros e denominados de “Síndrome de Ganser”. Na CID 10 a Síndrome de Ganser faz parte dos Transtornos Dissociativos (ou Conversivos) (F44).
Mais comum em homens do que em mulheres, normalmente inicia na vida adulta. O curso é crônico e o prognóstico é pobre. Estima-se que de 5 a 10% de todas as internações hospitalares se devam a esse quadro.
A denominação “Münchausen” dada por Asher enfatiza a questão das mentiras relativas à sintomatologia, mas também aponta para o problema mais grave e central: a tendência autodestrutiva. A atitude falsificadora é um meio utilizado por esses pacientes para alcançar o objetivo patológico maior: a autodestruição.
A ficção escrita a partir do barão revela a presença da agressão. Em Viagem à Russia, Münchausen conta o que fez com um general que jogava cartas e bebia muito, porém sem nunca se embebedar. Vivia com um quepe enterrado até as orelhas, o qual somente erguia quando bebia demais. Que significaria aquilo? Resolvendo esclarecer o enigma, o barão postou-se de mansinho por detrás do general:
“O nosso homem, numa batalha contra os turcos, perdera a parte superior do crânio, de maneira que, ao levantar o quepi, notei, ligada ao forro, uma placa de prata, que era a tampa do crânio. Assim, quando o álcool que ingeria principiava a agir, levantava muito simplesmente aquela tampa e deixava que os líquidos espirituosos que bebera se evaporassem, como tenuíssimas névoas. Não me contive. Risquei um fósforo e toquei fogo à névoa. Foi um espetáculo como jamais se viu. Um halo multicolorido apareceu, dançando, e, o que não se pode descrever, envolveu-lhe a cabeleira branca que crescia nas fontes num resplendor tão maravilhoso, que nunca santo algum jamais teve coisa igual em torno da cabeça, em qualquer tempo, desde que Deus onipotente tirou o mundo do nada” (As aventuras do Barão de Münchausen. G. A. Burguer, Editora Itatiaia, 1963, p. 14).
Como vemos, não há só mentira no relato; há também agressão.
Em História de caçadas lemos: “Certa vez, topei com um lobo, ferocíssimo animal que estava em toda a sua plenitude, e que, num ágil pincho, atirou-se sobre mim, sem qualquer preâmbulo. O único remédio foi meter-lhe goela abaixo o punho rigidamente cerrado. Daí a virá-lo pelo avesso, agarrando-lhe as tripas, tanto lhe enfiara punho e braço, foi coisa de segundos” (obra citada, p. 26). Um pouco mais adiante, na mesma página, conta de um cachorro louco, enorme e espumejante, que o atacara certo dia em São Petersburgo. Para melhor correr, livrara-se de um casacão que vestia e que, depois, mandara seu criado buscar e guardar no armário de roupas. No dia seguinte, no quarto de dormir, presenciou cena esuporante: “ Vi, com estes olhos que a terra há de comer, o meu casacão a surrar um terno novinho em folha, que apenas experimentara ao vir do alfaiate. Sacudido e espancado impressionantemente, rolavam os dois por cima de toda a minha roupa, que jazia estraçalhada pelo chão. Lá se ia, perdido, todo o meu vestiário, guarda-roupa sempre muito invejado e muito falado, tanto pela qualidade como pela quantidade. Resta acrescentar que, em medicina, este caso que acabo de relatar é único – o da raiva canina atacar tecidos”.
Em Segunda aventura no mar, nosso herói mentiroso é arremessado pelo movimentos das ondas provocado por uma baleia gigantesca contra à amurada horizontalmente. Deu tamanha cabeçada num amontoado de cordas que a sua cabeça se enterrou ombro adentro, deixando-o por muitas semanas totalmente sem pescoço.
Nesta mesma linha, em Segunda viagem à Lua, descreve os habitantes de nosso satélite natural com a particularidade de trazerem a cabeça debaixo do braço, como se carregassem um embrulho: “Se estão executando tarefa que demande grande movimentação, deixam-na a um canto, ou em casa, porque podem aconselhar-se com ela, estejam a um ou a cem quilômetros de distância. Quanto aos olhos, tem a mesma localização que os nossos, mas podem ser tirados do lugar, à vontade. Quando querem procurar alguma coisa no chão, não se abaixam, sobre os joelhos, como nós o fazemos e é grandemente incômodo, principalmente para quem sofre de reumatismo: não, tiram-nos e jogam-nos ao solo, donde localizam o objeto extraviado. Assim, abaixa-se uma só vez, para erguer o achado. Muito melhor do que andar de quatro pelo chão...” (obra citada, p. 125).
Pessoas que tiram órgãos, partes do corpo carregadas como embrulho... Lembro-me de uma mulher de trinta e poucos anos encaminhada ao psiquiatra por um cirurgião que percebeu sua insistência doentia em que lhe fosse indicado um procedimento cirúrgico. Foi com um certo orgulho que me contou haver se submetido há setenta anestesias gerais para procedimentos cirúrgicos grandes ou pequenos.
Relatou-me o prazer que sentira ao demonstrar a determinado médico sua coragem ao resistir à dor quando ele promovia a drenajem de um abcesso purulento. Ela desenvolvia abcessos em seu corpo injetando-se, às escondidas, meperidina por via intramuscular.
Sofria de osteomielite no ilíaco, com abcessos perenes na coxa direita. Também apresentava paresia dos membros inferiores, como conseqüência de lesão na coluna vertebral adquirida aos vinte e poucos anos, quando tentara o "suicídio" dando-se um tiro na região abdominal. A bala, após perfurar o fígado, alojara-se na coluna lombar. Nessa ocasião, submeteu-se a primeira cirurgia. A partir de então, a seqüência não teve mais fim.
Permanecia mais tempo no hospital que em casa, na maioria das vezes por sintomas por ela mesma provocados, tais como os abcessos. Desenvolvia escaras de decúbito, havendo feito inúmeros enxertos. Chegara a arrancar a pele enxertada às escondidas, recolocando-a posteriormente em uma tentativa de enganar a equipe médica.
Em outras ocasiões fazia quadro de retenção urinária sem motivo aparente, necessitando da aplicação de sonda de alívio. Em uma dessas tantas vezes, desenvolveu litíase vesicular, submetendo-se a cirurgia correspondente. Internou-se em vários hospitais, inclusive em outras cidades. Em uma dessas ocasiões, conseguiu que um médico a operasse alegando que o osso ilíaco a machucava ao deitar-se de lado. Nessa cirurgia foi removida uma porção do ilíaco e, como conseqüência, ocorreu a desarticulação óssea do membro inferior direito. Tal procedimento foi responsável pelo desenvolvimento da oesteomielite.
Em outra ocasião, queixou-se da última costela, sendo submetida a uma cirurgia para retirá-la parcialmente, havendo como conseqüência uma pleurisia.
Certa vez, insistiu em seccionar o tendão de Aquiles para que seu pé adquirisse, segundo ela, uma posição mais adequada para calçar o sapato, tendo em vista a paresia do membro. Era visível o ar de superioridade ao relatar a valentia com que havia enfrentado tudo isso.
A osteomielite progrediu e a paciente começou a apresentar infecções diversas. O membro inferior direito, desarticulado, constituía-se num foco grave e permanente. Agravando-se o quadro, optou-se pela medida extrema da amputação. A paciente enfrentou com exagerada satisfação tal procedimento. Mais adiante, veio a falecer em quadro septicêmico.
O problema do masoquismo observado nesses pacientes inicialmente foi compreendido como masoquismo moral: o indivíduo sente que atacou a alguém, vive rechaçado por seu superego e, para voltar a obter os favores dele, realiza o ato expiatório masoquista.
Ultimamente, enfatiza-se a presença do chamado “masoquismo narcisista”: o paciente trata de alcançar o sentimento de ser melhor que os outros. Sente-se superior no sofrimento, renunciando às satisfações, sendo capaz de suportar tudo.
Os sucessivos relatos de casos revelam que, em pelo menos uma parte desses pacientes, houve a vivência real ou imaginada de situações de rechaço e ou abandono parental na infância. Repetem, especialmente com os médicos, essa relação primitiva insatisfatória. Induzem aos médicos para que assumam o papel da figura parental má que conservam dentro de si. Pela simulação voluntária dos sintomas, o paciente pode, ao contrário de antes, assumir o controle da relação. Projetando no médico sua própria agressão, despertada pela incapacidade de tolerar a vivência primitiva de rechaço e ou abandono, o paciente estabelece uma relação sadomasoquista. Não leva mais dentro de si o objeto parental perseguidor, este agora está fora, depositado no médico e sob controle.
Por que o médico é o escolhido para o papel de sócio sádico? As respostas são insuficientes: algum contato prévio, em virtude da necessidade de tratar outras enfermidades, permitiu, em alguns casos, ao paciente encontrar na figura deste profissional o partner ideal.
Por que muitos médicos aceitam esse papel? Não existem pesquisas que respondam de forma convincente à questão. Porém, sabemos que, em parte, esta dupla sadomasoquista se estabelece quando o médico não sabe da existência desse quadro patológico. Um médico informado tem muito mais chance de evitar entrar no tenebroso jogo que lhe é proposto. Saberá que o paciente procura provocar a ira de quem o atende e estará prevenido contra o surgimento de sentimentos hostis dirigidos ao paciente;
O curso e o prognóstico serão mais satisfatórios se o transtorno for reconhecido em seu começo; haverá possibilidade de se proteger o paciente dos efeitos iatrogênicos de condutas médicas desnecessárias. A propósito, no conto O corpo do sr. Olmedo, o escritor e cirurgião uruguaio Juvenal Botto descreve, literariamente, a evolução trágica de um personagem que acaba sendo submetido a uma hemicorporectomia!
Alguns médicos haviam chegado a propor medidas desesperadas, como a de que se tatuasse no abdômem do paciente o nome da síndrome, para que, quando ele fosse em busca de outro médico ou hospital, os colegas percebessem de imediato do que se tratava, evitando, assim, a caminhada rumo à autodestruição.
O mais chocante, e os pediatras é que o digam, é quando nós, médicos, demoramos para perceber a existência da Síndrome de Munchausen por Procuração. Quando o pai ou a mãe confunde o médico: coloca gotas de sangue na urina do nenê antes de levá-la a ser examinada no laboratório. E os exames se sucedem e sintomas inexplicáveis não param de aflorar... Há casos gravíssimos em que o progenitor leva a criança à morte para viver aquele clima mais forte de uma doença de final trágico. Quando ele pai, ela mãe, é “forte e digna de admiração”, agüenta a perda de um filho e segue com a vida: masoquismo narcisista.
Marie Noe, uma norte-americana da Filadélfia, casada, de classe média, entre os anos de 1949 e 1968, viu morrer seus dez filhos. Uma criança foi natimorta e outra morreu no hospital. As demais, repentinamente, perdiam a saúde perfeita e chegavam à morte ao hospital. Marie Noe dizia que as encontrava azuladas e desacordadas ou arquejantes. Os médicos não conseguiam obter uma explicação. Doença genética ainda desconhecida? Mas e o filho que era adotado e morrera de forma idêntica aos demais?
Os parentes, os amigos, os vizinhos tinham muita pena e grande admiração daquela mãe, que suportava tudo com coragem e conseguia continuar vivendo uma vida equilibrada e produtiva.
Finalmente, no dia 4 de agosto de 1998, a promotora distrital da Filadélfia Lynne Abraham citou muitas provas para afirmar que Marie Noe, agora com setenta anos, havia sufocado seus filhos com um travesseiro. No dia 28 de junho de 1999, para espanto de Arthur, seu marido, a acusada levantou-se numa audiência no Tribunal de Jurisdição Comum da Filadélfia e reconheceu-se culpada. Um ou outro médico desconfiara da presença da Síndrome de Münchausen por Procuração. Porém, Marie Noe, quando sentia que poderia ser descoberta, mudava de médico, de hospital, de bairro, de cidade... Se todos os profissionais da saúde soubessem da existência da síndrome...
Felizmente, diferentemente deste, grande parte dos casos são reconhecidos a tempo. Graças, em grande parte, ao conhecimento que muitos médicos possuem dos textos sobre o barão. Afeiçoado a essas histórias, quando ouvem ou lêem sobre uma síndrome chamada “Münchausen”, param para prestar atenção e não a esquecem mais.
A literatura de Bürger e de Raspe inspirou filmes a respeito: Baron Munchausen’s Dream, de 1911; Baron Munchausen, 1943, dirigido por Josef von Baky; Fabulous adventures of Baron Munchausen, 1961, dirigido por Karel Zeman; The adventures of Baron Munchausen, 1989, dirigido por Terry Gilliam.
Quando no Lago del Dique, em La Rioja, subi a uma elevação onde havia uma pequena capela, meus olhos observaram uma paisagem absolutamente inusitada. Via La Rioja, lá embaixo, como uma cidade de praia com um vasto oceano à frente. Aquela interminável planície de areia iluminada por um sol ofuscante bem parecia uma planície de águas. Sim, era o que meus olhos viam. Os olhos mentem, é certo o que dizem deles. Meu colega argentino me relatou o caso de uma menina recém-nascida cuja mãe lhe fazia ingerir sulfato de magnésio e lhe injetava sangue intradérmico, simulando púrpuras para fazer com que os olhos do médico mentissem ao médico e o fizessem ver ali uma síndrome de sensibilização autoeritrocitária.
A propósito, lembro-me de ter comentado com meu colega que sempre achara que a literatura tem como função mentir, inventar planícies de água em áridos desertos. Estávamos frente ao oposto: a literatura abrindo nossos olhos para uma dura realidade, que precisa ser rapidamente descoberta, diagnosticada, contida e tratada.
A visão poliocular, o interesse multidisciplinar, as viagens através dos diferentes territórios do saber nos enriquecem e melhor nos capacitam pessoal e profissionalmente. Médicos, psiquiatras, escritores, especialistas em literatura, lembremos sempre José Maria Eça de Queirós quando, na Lisboa da segunda metade do século 19, no Rossio, no quarto andar do número 26, diante da estátua de dom Pedro IV, o nosso Pedro I, recomendou com convicção e afeto: “Ajudemo-nos uns aos outros!”