NA RUA DA ALEGRIA
NA RUA DA ALEGRIA – j.a.salton / Prêmio Marta Lia Genro Appel do VII Concurso Literário Prado Veppo
A tarde ia pela metade quando Lara desembarcou com sua mochila de um táxi na Rua da Doca Seca, em Macau. Havia um fluxo grande de pessoas entrando e saindo do pátio da Oficina Naval. Misturou-se às que entravam e, como da água vinha um vento gelado, entrou nas dependências do que lhe pareceu ser um museu naval. Encontrou lá réplicas em miniatura de navios. Uma inquietude não lhe permitiu observá-las. Retornando ao pátio, parou quase junto a um barco que, pelo seu estado, devia estar sendo reparado.
Lara tentou ponderar sobre a importância de portar-se calma e educada, sem espalhafato. Mas sua cabeça não ajudava, os pensamentos vinham desordenados. Achou que alguns homens cruzavam por ela e a observavam. Devia ser imaginação, deduziu, mas houve dois ou três que até viraram a cabeça para trás para vê-la de novo. Lara nunca chamara a atenção dos homens, tinha consciência disso. Quando com amigas, notava os olhares deles para elas. Nem por isso se descuidava. Agora, por exemplo, vestia uma calça justa e uma blusa que revelava o volume dos seus seios. E a jaqueta que usava por cima, deixava-a aberta. Não esquecera o batom vermelho nos lábios. Mesmo não sendo uma mulher atraente, achava importante apresentar-se bem cuidada. Especialmente naquela tarde, no encontro que teria.
“Minha cabeça é uma confusão só. Não sei se o abraço ou se o castigo com a minha indiferença. Vim de tão longe, pensei tanto nisso...”.
O desejo irresistível de vê-lo correndo em direção a ela começou a apoderar-se de sua alma e a fazê-la perceber o coração pulando no peito. Imaginou-o erguendo-a nos braços. Ela, retraída e fria, dispondo-se apenas a cumprimentá-lo ou, melhor dizendo, a mal cumprimentá-lo. Desejo de vê-lo, paixão por ele, talvez ódio, com certeza indignação!
Respirou fundo e deu-se conta de que ele não poderia correr em sua direção, pois sempre usara muletas. Não poderia erguê-la em seus braços.
Retirou da mochila um espelho. As mãos trêmulas não firmavam sua imagem nele. Desistiu de retocar o batom. “Melhor ir embora!”. Levantou-se. Era óbvio que não iria embora. Sentou-se em uma das cadeiras de plástico, das muitas que haviam ali soltas pelo pátio da Oficina Naval. Do Brasil a Macau fora uma viagem e tanto!
Erguendo a cabeça, viu ao longe um navio sendo puxado por um rebocador. Sua visão foi encoberta pelo fluxo agora aumentado de pedestres. Entre os caminhantes, um homem de muletas. Esforçou-se para vê-lo melhor: que homem comum! Se não fosse pelas muletas, nem seria notado. Lara teve a impressão de que ele a vira, de que sorria e avançava em sua direção.
Só teve tempo de pensar que iria fugir ao seu abraço, que ergueria bem o queixo para lhe gritar sua indignação, para vociferar sua revolta, mas nem a indignação nem a revolta explodiram de seu peito.
Levantou-se, mas não conseguiu manter-se em pé nem pensar em nada. Sentou-se e, olhando fixamente para aquele homem cada vez mais próximo e mais sorridente, teve vontade de chorar. Com esforço, abortou o choro e girou a cabeça para manter o olhar fixo naquele homem de muletas, de estatura mediana, de cabelos loiros e brancos que, antes de sentar-se ao seu lado, retirou com dificuldade uma mochila presa às costas e, depois de sentar, escorou as duas muletas em outra cadeira.
O rosto, se comparado ao das fotos que examinara antes de viajar, perdera beleza. Além das rugas, havia uma marca vermelha no nariz. Há quanto tempo estaria a usar óculos? A cor dos olhos era a mesma dos seus. Levantou-se.
- Vamos caminhar. Para qualquer lugar. Falamos depois...
O homem das muletas obedeceu. Abriu a boca sorridente, mas nada disse. Andaram lado a lado e em silêncio. Entraram em uma rua em cuja placa Lara leu Estrada do Repouso. Depois, entraram em outra: Rua da Alegria. Os nomes em português a animavam um pouco.
Em uma esquina, viu o vulto de pessoas em torno de uma fumaça que parecia sair de uma lata grande. Pessoas que não podiam ser distinguidas ao primeiro olhar, não só pela distância, mas também pela intermitência da fumaça, que ora a envolvia de todo, ora mudava de direção e permitia que se reconhecesse um boné, uma camisa vermelha...
Lara interrompeu a caminhada e voltou a olhar o rosto do homem das muletas. Suas sobrancelhas eram tão nítidas e tão densas que pareciam pintadas por tinta amarela. Abriu a boca como se fosse falar algo para ele. Fechou a boca e desviou o olhar para o grupo em meio a fumaça. Um homem parado à esquerda da lata grande pôs-se a contar alguma coisa que devia ser muito interessante porque os demais voltaram a cabeça em sua direção e puseram-se a escutar a narrativa. Pelo menos foi o que deduziu. Pouco depois, pareceu-lhe que todos começaram a cantar qualquer coisa muito melódica e triste.
- Quem são aqueles? – perguntou Lara.
- Quem?
- Aqueles lá, junto à fumaça.
- São desempregados.
Lara voltou o olhar para o homem que se escorava nas muletas para permanecer parado em pé e que tentava sorrir.
- Doze anos e você quer me abraçar?! Você quer me abraçar?! – exclamou.
- Quero muito! Minha filha, minha cabeça nunca foi muito boa. Vim para cá, você sabe, por ter conseguido uma vaga na marinha mercante, por tua mãe ter me deixado, por você, minha única filha, optar, com razão, pela mãe...
- Como é que você veio parar aqui? – interrompeu Lara.
- Ainda bem que vim parar aqui, ainda bem... No início eu fui como um daqueles – apontou para os desempregados.
Desviando o olhar em direção à fumaça que saía da lata e aos homens que ainda pareciam cantar, Lara sacudiu lentamente a cabeça. Seu pai não fora seu pai. Fora um irmão. No início, um irmão maior. Depois, ela foi tornando-se sua irmã maior. Via-o ali, de muletas, escorado nelas para manter-se em pé. Em uma esquina tão longe, mas tão longe do Brasil... E após tantos, tantos anos...
A canção triste dos homens da grande lata que saía fumaça se tornou mais audível. E Lara decidiu que tinha mesmo de chorar. Pois, para ela, todo o sofrimento que passara com o afastamento do pai, ela então com apenas quatorze anos, estava ali. A fumaça que vinha da lata grande a alcançou e trouxe com ela todo o sofrimento do mundo. Lara chorou sem conseguir conter os soluços que estremeciam seu corpo de cima a baixo.
Dando conta de que estava sendo observada por todos que ali cruzavam, virou-se e caminhou para dentro da Rua da Alegria. Seu pai logo a alcançou.
- Aqui, minha filha, aqui. Vamos neste restaurante. São meus amigos.
Lara obedeceu e, ao sentar junto a uma mesa, secou as lágrimas com a jaqueta.
- Hoje é um dos dias mais frios em Macau, dez graus centígrados. Minha filha, como é bom te reencontrar! Teus olhos são da mesma cor dos meus, mas certamente não tristes como os meus. Doze anos passaram-se...
- Doze anos e dois meses, e nenhum parabéns a você... nenhum parabéns a você por meu aniversário de quinze anos... de dezoito anos... de vinte...
- Filha, eu... não sei falar... falar o que sinto...
– Por ter passado no vestibular... por ter me formado...
- Minha filha... “Há um cão dentro de mim a roer os ossos / De todos meus pecados e remorsos”.
Lara compreendeu que seu pai usava como suas as palavras de um poeta e isso a fez lembrar que ele era metido a declamador.
- Você tinha quatorze anos, já era alta, mas não tanto, já era bonita, mas não tanto.
– Não sou bonita!
- É sim!
Sentiu o peso de um braço em seus ombros. Mirou com olhar firme, sem chorar, o rosto bem barbeado do homem de muletas. O braço tentava puxá-la com suavidade e firmeza.
- Minha filha, em Macau você vai dar um passeio de rickshaw...
- Não vim até aqui para passear!
Lara nem percebera que havia chá sobre a mesa. O pai, na infância, fora seu amiguinho, brincava como se fosse da sua idade. Na adolescência, Lara passou a desgostar-se: as brincadeiras do pai eram muito infantis. Aos quatorze anos começaram a se afastar e foi então que a mãe quis se separar.
- Por que você não se comunicou comigo, com a internet nem dinheiro é preciso...- reclamou ela.
- Tive vergonha. Ainda tenho. Você agora é uma médica. E eu, você sabe, eu... Nunca fui um pai no sentido de saber te sustentar.
- Eu sei pai. Você foi sempre como um irmão meu. A mãe é que nos sustentava.
- É que maquete lá no Brasil dava muito pouco dinheiro.
- E você não se preocupava muito com isso.
- Me preocupava, sim.
- Não foi fácil para a mãe pagar minha faculdade de medicina. Consegui uma bolsa, parte dela eu mesma vou pagar agora que vou começar a trabalhar.
- Eu não conseguia ganhar dinheiro. Quando arrumei o emprego no navio mercante, aceitei. Em Hong Kong me despediram. As muletas... Não adiantava explicar que meu fraco desempenho era devido à poliomielite. Mas eu tive muita ajuda, mas muita ajuda mesmo... “Há certos dias que, francamente, / Melhor seria dormi-los, / Já que não podemos morrê-los”. Sempre que eu repetia para mim mesmo, em voz bem baixa, para que ninguém me perguntasse o que era... Sempre que eu repetia o meu poeta eu me sentia um pouco menos só. Tive muita ajuda...
- Do poeta? – perguntou Lara, já sabendo a resposta.
- Do poeta... – murmurou seu pai tentando conter lágrimas. – E daí...
- E daí...?
- Daí, depois de muito tempo como aqueles da lata grande com fumaça, comecei a arrumar empregos temporários nas docas. Atualmente, faço serviço para o Instituto Cultural de Macau, na recuperação das Oficinas Navais. Nunca estive tão bem.
A empolgação do pai ao contar da maquete de navio que recém concluíra fez Lara lembrar dele construindo maquetes de caravelas. Raramente conseguia vender uma ou outra.
- Minha filha, pedi Dum Sum para nós.
O pai falava e falava. Para Lara, era quase como quando um menino volta da escola e quer contar tudo para a mãe. Pensou em criticá-lo, dizendo: “Você não vai me deixar falar? Não quer saber se tenho namorado?”.
- Nos primeiros tempos sofri dois atropelamentos, nada graves. O trânsito aqui é como na Inglaterra. Tenha cuidado ao atravessar uma rua.
Um homem de feições chinesas aproximou-se. Lara não entendeu nada da conversa dele com o pai. Pelas risadas de ambos, supôs serem amigos.
- O nome Macau – continuava a falar o pai, depois que o amigo se afastou – significa porto seguro, graças a uma divindade. Cau é porto e Ma é o nome abreviado de uma deusa.
Lara distraiu-se, cansada que estava da longa viagem. Via passar pedestres, alguns carros e muitas motonetas. A rua era estreita, os prédios, a maioria com seis pisos, pareciam perfilados, um encarando o outro.
Imaginou-se na rua olhando para a mesa em que estava. Um pai tão simples, tão limitado, um menino que a vida fez pai, que vivia nas docas e que não pôde ser o marinheiro que sempre sonhou - a poliomielite o fez sofrer desde pequeno - esse solitário menino-homem estava em um pequeno momento de orgulho. Mostrava a um amigo a filha. A filha que viajara tanto para vê-lo.
- Filha... “Há um cão dentro de mim pulando a esmo / Em torno da alegria de si mesmo”.
- Esse poeta, quem é?
- O Veppo. Foi médico do meu corpo, continua sendo da minha alma.
- Veppo? Ele teria um conselho para dar para mim? Estou precisando decidir muitas coisas. Tenho de dar a partida na vida que começo. Faço que especialidade na medicina? Caso com meu atual namorado? Procuro emprego em que cidade? E o que faço com meu pai? Sigo para sempre indignada com ele?
Lara disse o que disse olhando firme para o pai. Ele, de repente, levantou-se e foi ao balcão voltando com uma caneta. Começou com ela a escrever sem parar em um guardanapo. Depois entregou-o a ela
- “Quando te decidires. Segue...”
Lara voltou a olhar o rosto sério do pai antes de continuar a ler:
- “Não esperes / Que o vento / Cubra de flores o caminho. / Cria-o. Faze-o tu mesmo e parte. / Sem lembrar que outros passos pararam / E que outros olhos ficaram / Te olhando seguir”.
- Dum sum, minha filha, vem em pequenas partes cozidas a vapor. Você vai comer camarão... – falou o pai tentando disfarçar a emoção. – Comida muito antiga. Foi feita para tocar o coração de um imperador.
- Para tocar o coração... – murmurou.
“Pai, o que houve conosco?”, perguntou para si mesma enquanto guardava em seu bolso o guardanapo com a poesia. “Parte...”, continuou a falar para si mesma, “sem lembrar que outros olhos ficam te olhando seguir...” Com lágrimas na face, deixou-se levar pelo braço que suavemente a puxava. Com o rosto colado no peito do pai, permaneceu em silêncio. Ora escutava a respiração dele, ora, distraidamente, observava a vida fluindo na Rua da Alegria.
O tempo passou o suficiente para Lara notar que a respiração do pai e a sua entraram em sintonia. Teve vontade de erguer a cabeça para ver se no rosto dele, assim como ocorrera no seu, em vez de lágrimas, havia um leve sorriso. Mas não o fez, pois estava tão bom ali...
E Lara sorriu ao dar-se conta de que ela e o pai começavam como que a pular a esmo em torno da alegria... da alegria de si mesmos.