O medo no médico

O medo no médico

02/10/2019
O medo no médico

Caros afilhados:

Quando vocês deram a seus pais a alegria de nascer eu já era médico e estes longos anos me fizeram ver que nesta profissão o que mais fazemos é lidar com o medo. O medo que habita o interior de nossos pacientes e o medo que, velada ou descaradamente, penetra dentro de nós mesmos. 
Será este o único tema desta última e singela aula.
Primeiro direi que ser médico é sentir medo.
Depois falarei sobre como lidar com nosso medo.
Os Irmão Grimm escreveram sobre o herói que queria aprender a tremer. Ele se expunha a aventuras de arrepiar os cabelos e não conseguia tremer. Numa dessas peripécias, desencantou o castelo de um rei que, agradecido, lhe deu a filha em casamento. No leito conjugal e não nas perigosas aventuras ele acabou aprendendo o que tanto desejava. O novo relacionamento se solidificou e ele gritou: “Estou tremendo, finalmente estou tremendo!” O herói aprendeu a ter medo quando gostou de alguém, quando fez um vínculo afetivo. 
Nós médicos aprendemos a tremer a medida que pelo processo de escutar, de olhar, de perceber emoções vamos criando um vínculo de tipo gente com gente com nossos pacientes.
Véspera de Natal. Concluo o trabalho do dia numa enfermaria de psiquiatria para crianças e adolescentes. Espocam foguetes. As festas já principiam. No corredor que me levará para a saída do hospital e para o Natal, ouço passos. Atrás de mim um paciente, um menino. “Doutor diga para... para alguém que eu estou aqui”. Curvo-me para ouvi-lo melhor e me torno um pouco mais médico. Li, depois, que um colega no Uruguai vivenciara situação semelhante. 
Platão, há mais de dois mil e quinhentos anos, ensinou: “Tudo está se tornando, nada é”. Na nossa profissão é assim mesmo. Estamos sempre nos tornando. 
O médico uruguaio e eu, quando escutamos aqueles meninos, nos tornamos mais médicos. Ao escutá-los, aliviamos parcialmente seus temores de solidão. E seus medos passaram a ser nossos também. É a nossa obrigação, só somos médicos quando fazemos isto.
Antes de paraninfar uma turma de medicina, o dr. Samuel Levine visitou o Museu do Louvre e postou-se com calma e tempo frente a Mona Lisa. “O médico que observar cuidadosamente a Mona Lisa – disse ele no discurso a seus afilhados - verá que seu fascínio provém de seu hipertireoidismo. As pessoas com alta função tireoidéa tem olhos brilhantes e parecem interessantes pois a personalidade sempre se projeta pelos olhos”. Os modernos instrumentos diagnósticos devem se somar e jamais substituir o olhar. Olhemos para nossos pacientes como quem olha para um quadro de Leonardo da Vinci. Assim fazendo, vamos gostar, admirar, criar vínculos com eles e... reforçando em nós a capacidade de tremer.
Vamos “olhar” também e muito as emoções do nosso paciente. Ainda estudante eu aguardava o dr. Pedro Martinez ao lado da cama de uma jovem que chorava e se contorcia de dores. Sua mãe a consolava sem sucesso. Meu professor chegou para a primeira consulta, apertou sua mão e disse: “O pior já passou”. “Como passou se eu estou aqui desesperada de dor” – reclamou ela aos prantos. “Passou sim”- afirmou ele –. “Até agora você sofria sozinha com sua mãe. Agora você tem também a mim, aos colegas de outras especialidades que, se necessário vou chamar, você tem muitos ao teu lado, você tem toda a medicina com toda sua história e com todos os seus avanços”. Ao final da consulta, fechamos a porta do quarto com vagar para não acordar aquela jovem que dormia a sono solto.
Os anos se passaram. Encontro outro professor, então meu colega, o dr. Prado Veppo numa palestra. Uma reconhecida conferencista estrangeira nos transmite muitos conhecimentos em duas horas de brilhante explanação sobre a relação mãe-bebê. Não lembro mais suas palavras. Mas recordo da síntese da palestra que saiu espontaneamente dos lábios de meu professor enquanto tomávamos um café: “Toda a criança é um gira-mamãe”. Comentário tão despretensioso quanto definitivo de um médico possuidor de um grande tato, de um poeta: “Toda a criança é um gira-mamãe”. 
Falei no meu professor. Vou recuar mais no meu passado. Ambiente agitado, minha mãe aflita, meu pai preocupado. Dr. Telmo Ilha, pediatra, sentado numa cadeira de couro ao lado de minha cama, sem pressa e com voz calma, apontou um caminho. Voltou o equilíbrio a minha casa e eu, o doente, durmo e sonho que minha cama é uma nuvem. Criança iguala “gira-mamãe”. Mamãe iguala “gira-médico”. Sim, é função do médico ser continente dos medos de seu paciente e dos que, aflitos, o amam.
Quantas vezes o pediatra de meus filhos, dr. Rudi Goelner, presente nesta cerimônia, aliviou os meus medos? 
Outro dia o dr. Telmo atende um irmão meu, olha para mim e ordena com voz calma: “Pega teu travesseiro e venha te deitar, amanhã você estará doente como ele”. Obedeço correndo! Como é bom ser doente! O medo não mais me aflige. Aflige, deste momento em diante, o meu médico. Como evoluiriam aquelas crianças com sarampo? Teriam alguma complicação? 
Eu me pergunto hoje: como meu pediatra lidava com os seus medos? Com o medo de perder por morte alguns daqueles seus pequenos pacientes? Com o medo de cometer um erro, um erro médico e, com ele, provocar sofrimento e sofrer também?
Meus afilhados, se um médico não aprendeu a tremer, médico ele não é. 
Comecemos a segunda parte desta última aula: como lidar com nosso necessário tremor? Com o medo de ocorrer sofrimento por erro nosso e com o medo humano que sentimos ao nos vincularmos a pessoas que estão a perigo de sofrer ou de morrer?
Vou falar sobre reparar e sobre compartilhar.
"Um som de trovão", conto do escritor norte-americano Ray Douglas Bradbury, nos faz refletir sobre o reparar. Eckels, o personagem principal, vive no ano 2055. Com o avanço da técnica, já foi possível construir uma Máquina do Tempo que permite aos habitantes da Terra organizarem sofisticados safáris ao passado.
Eckels resolve matar um Tyranossaurus rex. Volta no tempo levado pelo guia Travis que o adverte:
- Não queremos alterar o futuro, muito cuidado.
O animal escolhido era caçado segundos antes da hora em que iria naturalmente morrer. E havia que se ter extremo cuidado para não matar mais nada. Nem um rato. Porque, matando um rato todas as demais famílias oriundas desse rato não existiriam. Por falta de dez ratos, uma raposa morre. Por falta de dez raposas um tigre morre de fome. Dali a milhões de anos, um homem das cavernas sai à caça e não encontra o tigre que iria encontrar e comer. Esse homem morre antes de reproduzir. Significa que milhares de homens não mais nascerão. Um povo todo não existirá.
Eckels não pode pisar fora de uma plataforma suspensa. Ocorre que ele, num erro involuntário, se desequilibra e pisa com a bota direita na relva. 
De volta ao ano 2055, Eckels observa que a sala de onde haviam partido estava lá, mas não era exatamente a mesma. O mesmo homem estava sentado atrás do mesmo balcão, mas o mesmo homem não estava sentado exatamente atrás do mesmo balcão. Havia algo diferente no aroma do ar. As mesmas ruas estavam lá mas não eram exatamente as mesmas. O cartaz de propaganda do Safári estava lá, mas algumas letras eram estranhas.
Eckels imagina o pior. Examina seu calçado. Vê barro embaixo de sua bota. Retira-o e verifica que, misturado com ele, há uma borboleta morta. Que horror, matara uma borboleta! Matar uma borboleta não podia ser tão importante assim! Podia! O planeta não era mais exatamente o mesmo.
Como reparar? 
Não poderá fazer a borboleta viver de novo. Nem a Terra voltará a ser o que era. Eckels acha que não há como reparar e, culpado, pede que Travis o mate. Ajoelhado vê Travis apontando-lhe um rifle e o último som que ouve é o som de um trovão. 
Eckels errou ao não perceber que reparar sempre é possível. Reparar não significa necessariamente ressucitar a borboleta, nem voltar no tempo histórico. Quando erramos em relação a um ser humano, erramos em relação a toda a humanidade. A reparação, portanto, será dirigida à humanidade. 
Na medicina reparamos reorientando o tratamento do paciente vítima de nosso erro. Como nem sempre isso é possível, reparar significa também beneficiar mais e mais os pacientes futuros. Significa ir se tornando cada vez mais e mais médico.
Portanto, uma das maneiras de lidar com o medo de errar no ato médico é a certeza de que sempre teremos a possibilidade de uma reparação.
Quando ao medo existencial e humano que sentimos ao nos vincularmos gostando de pessoas que estão a perigo de sofrer ou de morrer, sugiro o que chamo de “o medo compartilhado”.
Há um poema, escrito por um médico, Paulo Guedes, que me foi passado por seu filho, também médico, Paulo Sérgio Guedes, que conta do diálogo de um pai com um filho num barco no mar.
Mais ou menos assim: "Meu filho segura o leme que teu pai vai descansar... Meus olhos já viram muito, meus ouvidos mais ouviram, meus sentimentos sentiram o que amanhã vais sentir..." O filho reluta em pegar o leme, afirma que é apenas filho e que quando a noite escurecer no mar as assombrações virão lhe assustar: "Quem sou eu para ocupar seu lugar?" 
O pai responde explicando que ele é seu filho. Isto significa que ele é filho do filho do Pai: "... de meu pai de quem sou filho e quando faltar o brilho do sol que clareia o mar, repara e verás, então, que teu medo terá medo de nós três dentro de ti".
A geração de Telmo Ilha, Pedro Martinez e Prado Veppo sentiu os mesmos medos no trabalho médico que a minha agora sente e que sentirá a geração que cola grau nesta cerimônia, a geração de vocês meus afilhados. 
Sendo assim, nada mais prático do que compartilhar os medos,os nossos medos de médicos.
Meus afilhados e amigos, encerro dizendo para cada um “...teu medo terá medo de nós três dentro de ti”. Na poesia e, tenho convicção, aqui também neste momento inesquecível, o filho, após ouvir o pai, com o espírito encorajado assume a nova profissão afirmando tão alto quanto o necessário para se impor frente as assombrações: “...dai-me o leme...deitai, descansai... dai-me o leme".
Um forte abraço do amigo de sempre.
(*Dr. Jorge Alberto Salton - Discurso como paraninfo na formatura da Faculdade de Medicina/UPF - dez 2002)

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