Três encontros com Cyro Martins
Escrito por Jorge Alberto Salton
No almoço, após a conclusão dos debates de mais um simpósio de psiquiatria, o acaso me colocou sentado frente a frente com Cyro Martins. A segunda vez em que podia conversar pessoalmente com ele. A primeira acontecera há vinte anos.
Lá pelo ano de 1975, Cyro Martins vai a Passo Fundo para um encontro literário. Éramos seis pessoas presentes a sua palestra. Cons-trangido, sem saber o que dizer, comecei a lastimar o fato de sermos tão poucos. Afinal ele fizera trezentos quilômetros e faria mais trezentos para retornar a Porto Alegre. Ele, de pronto, dividiu seiscentos por seis e concluiu cem quilômetros por pessoa presente. Depois de comentar que quando uma reunião consegue ser um encontro autêntico entre seres humanos para discutir coisas humanas pouco importa a distância percorrida ou o número dos presentes, disse que eu havia lhe dado uma medida objetiva: quilômetro/pessoa.
Pensou um pouco e achou que cem quilômetros por pessoa talvez não pegasse muito bem mesmo, que ficaria melhor se fosse cinqüenta quilômetros por pessoa. Não podendo ter a certeza de que se tratava de brincadeira, fiquei ainda mais embaraçado. Aliviei-me quando ele me avisou que agora já haviamos alcançado os almejados cinqüenta quilômetros por pessoa. Mais adiante, com a chegada de mais interessados, a equação se estabilizou em dez quilômetros por pessoa.
Essa lembrança me traz outra. Meus primeiros escritores foram: Érico Veríssimo, Cyro Martins e Dyonélio Machado. Ocorre que meu pai em termos de literatura só lia escritores gaúchos. Esses três eram seus preferidos, mas também o vi lendo Josué Guimarães e, mais no fim de sua vida, Moacir Scliar. Mas ele lia todos os livros dos seus escritores e relia-os um número incalculável de vezes. Quando criança, as voltas com os livros de português, matemática, história da escola primária, livros que lia o minimo obrigatório e só uma vez, eu não conseguia compreender como é que meu pai estava ali naquele sofá de novo com o Continente na mão. As semanas se passavam e lá estava ele de novo relendo um livro que eu já o vira ler nem sei quantas vezes. Que sensação de enfado isso me dava. Um dia, um pouco mais crescido, sugeri que fizesse uma marca no livro após cada leitura. Ele bem que tentou, o Estrada Nova que tenho apresenta uma fileira de risquinhos na última página.
Quando encontrei-me pessoalmente pela primeira vez com Cyro Martins, já não recorria mais a matemática há muito tempo. Recaí por pura ansiedade de me ver frente a frente com um dos meus primeiros escritores e não pude aproveitar como gostaria aquele momento único.
No segundo encontro, no almoço após a conclusão dos debates científicos, tomamos alguns copos de cerveja juntos e chegamos a um tema sempre questionado: só escrevemos um texto literário forte quando o fazemos a partir de nossas vivências infantis e adolescentes? Quando nossas vivências coincidem com as de um segmento significativo da população, nosso texto se torna definitivo e até mesmo histórico? Ernildo Stein escrevera: “Cyro Martins converteu em monumento literário o lado de sombras de nossa realidade”. Cyro o fez porque o “lado de sombras” esteve muito visivel nos seus primeiros anos de vida? Ou seja, para o escritor vale aquela conhecida assertiva: a fruta nunca cai muito longe do pé? Somos todos, no fundo, memorialistas? Trocamos algumas lembranças pessoais, as vivências de um cidadão que mora no interior, no final já em ritmo acelerado, o almoço estava se esvaziando.
Saí desse segundo encontro, profundamente gratificado e já pensando no terceiro. Pois Cyro Martins teve a bondade de me convidar para visitá-lo e o fez com insistência a ponto de me convencer de que não iria importuná-lo.
Conforme o combinado, iria lhe telefonar dentro de alguns dias avisando quando estaria de novo em Porto Alegre. É claro que eu estaria em Porto Alegre a qualquer dia e a qualquer hora. O que são seiscentos quilômetros para um encontro com Cyro Martins?
Nos dias seguintes, havia dentro de mim uma suave sensação de euforia. Resisti ao ímpeto de lhe telefonar imediatamente. Aguardei alguns dias mais. E, foi então que soube de sua hospitalização.
O terceiro encontro não houve. Porém, conservo dentro de mim alguns dos diálogos que imaginei teríamos. Seria o mais gratificante de todos. O convite recebido, foi um grande presente de Cyro. Ajuda a contrabalançar a sensação irrecuperável de perda, perda doída.
Sei que o terceiro encontro corresponde ao desejo e a frustração de todos os que aprendemos a admirar a pessoa e a obra de Cyro Martins. Somos uma legião imensa, na qual não esqueço de incluir meu pai. Me resta fazer como ele: reler Estrada Nova tantas vezes a ponto de esquecer de enumerá-las com mais um risquinho na última página.