O Futebol e a pacificação de Passo Fundo
Autor: Jorge Alberto Salton
O que fez Passo Fundo depois de ser dividida ao meio pela maior guerra civil do Brasil? A metade era Federalista, os maragatos, liderados por Prestes Guimarães. A outra metade, Republicana, os chimangos, liderados por Gervásio Annes. A metade com as cores verde e branca dos Republicanos, a outra metade com as cores vermelhas dos Federalistas, com o famoso lenço vermelho.
O que fazer com o ódio acumulado? Com o desejo de vingança? Do outro lado da rua “eu” via o homem que matou meu sobrinho, meu pai. Na igreja, eu percebia a presença dos filhos de alguém que eu feri. A cidade era pequena, pisava-se os mesmos lugares, o mesmo cemitério. Gervásio Annes e Prestes Guimarães, estão enterrados a dez passos um do outro no Cemitério da Vera Cruz. O que fazer com o ódio acumulado?
Quando Tânia Rösing, há alguns bons anos, me convidou para participar da Mesa Redonda intitulada Futebol e Literatura na 7ª Jornada Nacional de Literatura, voltei-me com afinco para a pesquisa que realizava a tempo: o futebol como pacificador. Conservava material colhido por meu avô, Armando Annes, e por meu pai, Wolmar Salton. O primeiro, vinculado aos acontecimentos de 93 por ser filho de Gervásio Annes. O segundo, do mundo do futebol, patrono do S.C. Gaúcho. Em relação ao tema, inclusive, já havia publicado o romance Milan Miragem.
Os fatos por mim coletados foram revelando a forma discreta como nossos antepassados lidaram no pós-conflito e o papel que o futebol desempenhou. Não se falava na revolução de 93. Porém, de forma indireta e sutil procuravam civilizar as disputas dela herdadas.
Alberto Helena, jornalista (atualmente participa do programa Bem Amigos de Galvão Bueno no Sport TV), abordou na Mesa Redonda da 7ª Jornada o futebol como simulação de um campo de batalha de uma guerra. De minha parte, focalizei o futebol em seu papel de pacificador.
Em 1918, um grupo de pessoas funda o S.C. Gaúcho, curiosamente com as cores verde e branca dos Republicanos. Em 1922, um grupo de pessoas funda o 14 de Julho, curiosamente com a cor vermelha dos Federalistas.
E a cidade passou quase cem anos sem falar na guerra civil. Nossos bisavós, avós e pais não falavam no assunto. Nas escolas não se falava em Republicanos e em Federalistas. Mas se falava o tempo todo no Gaúcho e no 14 de Julho.
Durante todo esse tempo em que a cidade não falou no lenço vermelho e no lenço verde e branco, ela falou, falou e falou no Gaúcho e no 14 de Julho. Na bandeira vermelha do 14, na bandeira verde do Gaúcho.
As disputas eram acirradíssimas. A cidade se dividiu entre esses dois clubes, todos participavam dos intermináveis debates e enchiam os estádios. Os homens da guerra civil saíram de cena e deram lugar aos homens do futebol.
No romance Milan Miragem, a certa altura eu promovo o encontro de Pedro Nassar, coureiro, homem de várias mortes, que carrega consigo a faca que seu avô usou nas degolas da guerra civil, com Artur Jorge, técnico de futebol. O encontro do homem da revolução com o homem do futebol. Lutam. Pedo Nassar tem o técnico sobre seu domínio. Resolve fazer o que sabe, degolá-lo. Manda-o tirar a roupa, como faziam antigamente para que ela não se sujasse de sangue já que passaria a ser sua propriedade. Degola é boa de sangue quente. Uma troteada. Artur Jorge pelado e de sapato, corre ao lado de Pedro Nassar, vestido, com revolver no coldre e a famosa faca na cintura, nas costas.
A certa altura, de forma totalmente inesperada, Pedro Nassar inicia queda para frente. O técnico, ex-jogador de futebol, batera com o pé esquerdo no pé direito do coureador bem no momento em que este, levantado, iria cruzar pelo pé de apoio. Tranco sutil e eficiente de zagueiro curtido no futebol do interior gaúcho. Artur Jorge esticando rapidamente o braço conseguira alcançar o cabo prateado. Bem... a lâmina penetra por entre as costelas. O homem da revolução sai da cena histórica eliminado pela chegado do homem do futebol.
Artur Jorge, antes de ir embora, reúne folhas e gramas e faz um travesseiro sobre o qual deposita, com cuidado, a cabeça morta de Pedro Nassar. Um gesto! O reconhecimento de que Pedro Nassar era também seu passado. O homem do futebol é a continuação atenuada do homem da revolução das degolas.
Gaúcho e 14, verdes e vermelhos, continuaram a ser depositários de nossos demônios. Sartre dizia: “os demônios são os outros”. Enquanto existiram as disputas acirradíssimas entre nossos dois clubes, nossa cidade vivia uma rivalidade mais intensa do que a de Grêmio e Inter.
Quando o 14 de Julho terminou, a disputa terminou, o futebol de Passo Fundo esfriou. Prova de que sua pujança e sua força não eram motivadas apenas pelo espetáculo esportivo, havia outra função bem mais profunda. Sabíamos onde estavam os demônios. Para alguns, os demônios eram verdes e estavam lá no estádio da montanha. Para outros, os demônios eram vermelhos e se alojavam onde hoje é a rodoviário, no Estádio Celso Fiori.
Milan Miragem não deixa de ser um pequeno estudo de caso que revela a função forte do futebol organizando e civilizando o desejo competitivo dos seres humanos dentro de uma mesma comunidade.
No futebol, ensaiamos a vida, treinamos a vida. Aprendemos a tolerar as frustrações nas sofridas derrotas. Ele conduz nossos bons sonhos adolescentes. E, acima de tudo, ajuda a organizar nossas disputas sociais.
E não esqueçamos que o futebol também nos ensina a viver as alegrias desta vida como devem ser vividas: com urras e foguetórios.