A metamorfose do cavalo morto
Artigo de Jorge Salton publicado em Zero Hora.
"Heróis foram aqueles que, no pós-conflito da Batalha do Pulador, conseguiram lidar com tudo aquilo sem voltar à metralhadora e às degolas".
Jorge Alberto Salton
“Ao ouvir o sinal de carga eu corri para a coxilha e ali vi o espetáculo mais lugubremente grandioso que só a presença e a vista podem dar idéia.”
Ângelo Dourado em Voluntários do Martírio.
As carroças davam saltos e, em cada salto, os gritos dolorosos dos infelizes feridos, amontoados, sem cobertores, sobre tábua dura colorida de vermelho-sangue. Frio intenso cobria os campos de geada. Muita pressa. Recém acabara a maior e a pior batalha da Revolução Federalista. Mais de seis mil homens tentaram por seis horas matar uns aos outros. Fora eficiente a estréia da metralhadora na América do Sul.
Viagem triste, nos conta o médico Ângelo Dourado. Fuga do horror. Mas o horror nunca fica para trás. Breve parada. O que se vê? Sepultura rasa com vários corpos. Uma mão para fora da terra agarrada à raiz mais próxima. Enterrado vivo.
Outra parada. Para deixar quem geme demais, quem sofre demais com os solavancos. Ninguém quer ficar. Preferem morrer sofrendo nas carroças junto aos companheiros, com os malditos solavancos, a sentir o pânico de serem alcançados vivos pelo inimigo e, pouco a pouco, mutilados até a morte. São muitos os que morrem nas carroças.
Assim segue aquela viagem triste iniciada na tarde do dia 27 de junho de 1894 em seguida ao término da Batalha do Pulador (também chamada de Campo dos Mello e de Passo Fundo).
Mais uma parada. Onde andará Nunes? Ângelo Dourado lembra-se do primeiro ferido – mal começara a peleia, nem chegara a amanhecer por inteiro e já lhe trazem Nunes. Uma bala atravessara sua garganta, tirando-lhe o uso da palavra. Aplica, com urgência, um aparelho e ele ainda volta para comandar por meio de acenos. Nunes... Nunes viaja?
Acampam. O lugar está cheio de esqueletos. O estado do coronel Brasil é desesperador (pneumonia?). Ângelo cuida dele antes de deitar à mercê do sereno da noite gelada. Uma pequena cerração. O cansado médico vê numa volta do caminho uma diligência. Mas como podia ser uma diligência? Não, não era uma diligência. Era uma casa. Ou já tinha muito viajado uma viagem alegre na diligência e alcançara a tão desejada casa? Casa era tudo o que podia querer. Observa satisfeito: é uma bela casa, aconchegante casa. Nova, pela cor do telhado.
Desfaz-se a pequena cerração. Não era diligência, não era casa, era um cavalo morto na beira da estrada. Pobre Ângelo Dourado e seus companheiros da tragédia do 27 de junho. Metidos naquele emaranhado de morte e insensatez ainda conseguem metamorfosear morte em vida.
A viagem segue... segue por muitos dias, meses... seguiu por mais de cem anos. Gerações sucederam-se. Agora é a nossa vez. Andamos doze quilômetros a partir do centro de Passo Fundo, alcançamos o distrito de Pulador e contemplamos os marcos onde ficaram naquele amanhecer lúgubre as tropas inimigas... Inimigas?! A questão útil é: o que agora devemos/podemos fazer de tudo aquilo? Nada? Recordar para esquecer? Só recordando com sentimento temos chance de esquecer uma tragédia? Isto é pouco? Só sei que qualquer coisa é mais e melhor do que transformar destruição em louvação.
Quando me debrucei sobre este tema ao escrever o romance Milan Miragem, passei a perguntar a uns e outros que por aqui vivem: aquela tragédia afetou seu bisavô, avô, mãe...? E você sentiu seus reflexos? Muitos não o sabiam e aqueles que respondiam sim falavam sempre em marcas pesadas.
Assim como nós, os personagens de Milan Miragem não lembram aqueles tempos como tempos heróicos. A negação não chegou ao ponto de transformar destruição em louvação. Pudera, não foi tragédia pouca. Passo Fundo, no período da Revolução Federalista, viu sua população ser reduzida de vinte e cinco mil para quinze mil habitantes. Um rebanho de cerca de cento e cinqüenta mil cabeças de gado desapareceu.
E não tem medida o quanto desapareceu de bons sentimentos nas famílias que sobraram. Muita dor de perda e muito desejo de vingança. Que fazer de todo aquele ódio já que se teve de continuar a compartilhar as mesmas ruas, as mesmas praças, os mesmos bancos escolares com os matadores de seus pais, irmãos...
Heróis fora aqueles que, no pós-conflito da Batalha do Pulador, conseguiram lidar com tudo aquilo sem voltar à metralhadora e às degolas. Sobre estes, modesta e ficcionalmente, trata Milan Miragem.
Antigamente, as revoluções prosperavam, por vezes, das discussões embaladas a álcool nos tradicionais churrascos. Na sociedade complexa de hoje muitos mediadores foram sendo criados para burilar, desviar e apaziguar o instinto destrutivo que explode nas competições. Há cem anos não havia o futebol.
Mas, cuidado: uma guerra civil é perigo permanente nas sociedades humanas. Nossa história é rica em exemplos a não serem seguidos. A guerra civil de 1884 é apenas um deles. Há muito “cavalo morto” à beira da estrada.
Por outro lado, há um dado positivo: observando o cotidiano do povo que aqui vive, vemos quanto seguimos capazes de metamorfosear o “cavalo morto” de cada dia. Continuamos construindo as necessárias miragens. Somos valentes. Pois só valentes constroem miragens.