E ASSIM APRENDI QUE PODIA TREMER

E ASSIM APRENDI QUE PODIA TREMER

30/03/2021
E ASSIM APRENDI QUE PODIA TREMER
APRENDI QUE PODIA TREMER
Ainda estudante de medicina, aguardava o professor Milton Shansis ao lado da cama de uma jovem que chorava e se contorcia em dores. Sua mãe tentava consolá-la sem sucesso. Estávamos no Hospital Universitário de Santa Maria.
O Sol passava pelo vidro da janela. Era pálido o rosto da jovem paciente e seus cabelos castanhos não tinham brilho algum. Sua voz estava já rouca de tanto se queixar. As mãos da mãe descansavam sobre seus joelhos, uma em cima da outra. Não sabia mais o que fazer.
Eu também já tentara de tudo. Cheguei até, com a ajuda mãe, arrastar a cama um pouco para o lado para que o sol iluminasse aquele rosto pálido.
Meu professor chegou para a primeira consulta, apertou sua mão e disse: “O pior já passou”. “Como passou se eu estou aqui desesperada de dor?!”, ela reclamou aos prantos. “Passou sim” – afirmou ele. “Até agora você sofria sozinha com sua mãe. Agora você tem também a mim e aos colegas de outras especialidades que, se necessário, chamarei. Você tem contigo toda a medicina, com toda a sua história e com todos seus avanços”.
Ao final da consulta, fechamos a porta do quarto com vagar para não acordar aquela jovem que dormia a sono solto. Eu, que antes tentara de tudo para acalmá-la, fiquei impressionado com o sucesso do professor Milton. Ele, percebendo meu olhar de admiração, explicou: “Quando eu falei que ela não estava só, que se necessário chamaria outros colegas, eu estava aliviando os medos dela e os meus também. Ainda não sei como poderei ajudá-la. E ela, agora, faz parte da minha vida e dos meus medos”.
Não fazia muito, havia lido o que os irmãos Grimm escreveram sobre o herói que queria aprender a tremer. Ele se expunha a aventuras de arrepiar os cabelos e não conseguia tremer. Em uma dessas peripécias, desencantou o castelo de um rei que, agradecido, deu a ele a filha em casamento. No leito conjugal, e não nas perigosas aventuras, ele acabou aprendendo o que tanto desejava. O novo relacionamento solidificou-se e ele gritou: “Estou tremendo, finalmente estou tremendo!”. O herói aprendeu a ter medo quando fez um vínculo afetivo.
Com o professor Milton, aprendi que os pacientes fariam parte de minha vida e que eu podia sentir em mim o medo deles e o meu próprio medo. Podia sim, pois haveria sempre a possibilidade de diminui-lo compartilhando. Não precisava ficar defensivamente distante do sofrimento das inúmeras pessoas que iria atender ao longo da profissão. Podia ficar próximo, bem próximo.
Por mais anos que eu tenha de profissão, o medo continua a aparecer. Vem a mim do meu paciente. Deixo que venha, posso senti-lo. Perdi o medo de tremer. Sempre que eu tremo, repito as mesmas palavras ditas pelo meu professor. E o tremor vai desaparecendo e sendo substituído pela sensação confortante de que não estou só na empreitada: meu professor está comigo.
Abração

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