Módulos do Curso
QUEM É ESTE A SEU LADO?
- ESSE AO SEU LADO É VOCÊ AMANHÃ
- CONVIVER E VER NO QUE DÁ
- A TOMOGRAFIA DE UMA PAIXÃO
- MUITO ADULTO
- BUNDINHA NOTA A
- UMA, DUAS BROCHADAS
- QUANDO UM OLHAR CATIVA
- DE CADA TRINTA, UM É
- AINDA A BROCHADA
- QUERIDA NETINHA
- CIÚMES NA OXFORT STREET
- ESPECIAL E ÚNICO
- PERVERSOS POLIMORFOS
- O CONFRONTO
- O DESENCANTO
-
O TAMANHO DO PÊNIS
- FLAGRANTE
- A LOUCURA A SEU LADO
- A VANTAGEM DE SER O QUE FOI DEIXADO
- TIAGÃO VERSUS ROBINSON (I)
- O TRAÍDO E SUA MATURIDADE
- LARISSA E O QUARENTÃO
- RETORNAR PARA MELHOR TERMINAR
- A BOA E A MÁ PAIXÃO
- MÉXICO
- TIAGÃO VERSUS ROBINSON (II)
- BROCHADA E AIDS
- TIAGÃO VERSUS ROBINSON (III)
- DIEGO VOLTA DO MÉXICO
- NICOLE CONTA DO IRMÃO
- GRAVIDEZ: DESEJADA VERSUS INDESEJADA
- BEBEL E DANILO
- JACKSON NÃO É UM DOM JUAN CLÁSSICO
- NICOLE COM O NAMORADO
- DIEGO E ROSÁRIA
- MARIAS-SEM-VERGONHA
- O DESFECHO COM TIAGÃO
- DIEGO-VALENTINE-ROSÁRIA
- A FESTA
- EM VEZ DE POSFÁCIO
OBSERVAR O QUÊ?
PERSONALIDADE HISTRIÔNICA
Anderson, que já nos havia feito trocar o horário do encontro por duas vezes, chega atrasado. Percebo-me excessivamente tolerante com ele e com os outros rapazes. Provavelmente porque há algo maior a me atrair para esses encontros, algo secreto. O que será?
Anderson deve pentear com escova o cabelo loiro. Bem barbeado, mantém um cavanhaque ralo e discreto. O aro azul dos óculos, ao contrário, chama bastante a atenção.
Conta que Júlia não está admitindo a idéia de ele preferir sair com amigos a sair com ela. Que na última vez que transferiu nosso encontro o fez porque Júlia queria sair para jantar. Porém, assim que soube da transferência, desistiu da janta.
- Ao mesmo tempo em que sinto uma tesão enorme por ela estou começando a me irritar.
Conta que recém estão começando a namorar, que a acha muito atraente sexualmente, no que Diego e Jackson concordam.
- Ela me mata. Vocês já viram Júlia... roupas sumárias... papo liberado... Se, por um lado, gosto, por outro fico envergonhado.
Anderson nos conta que Júlia vai ao cabeleireiro todo o final de tarde. É amiga íntima dele e de todas as funcionárias. Fora buscá-la no dia anterior e ficara impressionado com o quanto ela borboleteia dentro do salão e o quanto todos a elogiam. O mesmo se passa nas lojas de roupas. Em duas ela é cliente preferencial. Também lá presenciou o quanto é elogiada.
- Ela também deseja de ti o mesmo tratamento? – questiono esperando resposta positiva.
- Sim, se eu não elogio alguma coisa nela a cada dez minutos, já a sinto magoada.
- Se ela estivesse aqui conosco, como a teríamos de tratar?
- Em primeiro lugar, ela não sabe o motivo de nossos encontros, é óbvio.
- Aliás – interrompo –, volto a insistir: nossos encontros são públicos, tanto é que o fazemos em bares e restaurantes, mas o conteúdo de nossa conversa é privado. Falamos das pessoas com as quais vocês se relacionam intimamente. Portanto, não tornem público o que é privado.
- Estou guardando segredo – defende-se Diego.
- O Jackson andou contando para alguém. Tanto é que esse alguém me procurou na saída de uma palestra. Quer montar grupo igual.
- Já sei quem é. Encontrei essa fulana numa boate e, meio bêbado, quis me exibir dizendo que entendia as mulheres, tanto é que as estudava – aclara Jackson.
- Cartão amarelo pra ti – ameaço, erguendo o guardanapo aberto.
- Voltando a Júlia – retoma Anderson –, levei-a a uma janta na qual estavam Jackson, Diego e outros. Eles podem falar.
- Uma gatíssima, professor. O perfume! Que perfume! O Anderson deve andar desesperado, aumentou a punheta uns setecentos por cento! – provoca Jackson levando um tapa de Anderson na cabeça.
- Estranhei o quanto ela, na chegada, me abraçou e me tratou... assim como se fossemos íntimos de há muito tempo. Não sei, mas se eu fosse o namorado talvez me sentisse traído a cada nova apresentação... – cogita Diego.
- Eu me sinto – assente Anderson.
- Júlia deve ter notado que todos os homens presentes admiravam sua beleza, era visível o quanto estava feliz, radiante. Depois surgiram outros interesses, um celular toca daqui, outro dali... Cada um organiza o seguimento de sua noite e Júlia deixa de ser o centro das atenções – relata Diego.
- Júlia irritou-se com essa mudança. Acusou-me de só ter amigo galinha: “A noite toda dependurados naqueles celulares caçando!” Tive de prometer que não andaria mais com o galinha do Diego, com o galinha do Jackson... Se olho para o lado, também sou galinha.
- Você sabe dizer se a Júlia sempre foi como é hoje? – investigo.
- O irmão adolescente dela, que aliás não a suporta, me disse: “Olha, cara, tu tá lascado! Logo, logo tu vai ficar vesgo por ela e vai ter que viver paparicando ela!”
Todos rimos.
- Perguntei mais e ele disse que desde sempre ela é o centro das atenções em casa. “É muito exibida e os velhos não a educam!”
- O guri tem razão. O Anderson tá lascado! Porque Júlia é boa! Se é boa! – sentencia Jackson.
- Professor, afinal, quem é Júlia? – pergunta Diego.
- A Júlia não está frente a uma avaliação psiquiátrica. Porém, a partir dela posso ajudá-los a reconhecer um tipo de pessoa que, com relativa freqüência ao longo da vida, estará ao lado de vocês. Pessoa que apresenta uma personalidade diferente da média.
Explico que todos temos um jeito de ser, nosso jeitão, observado na maneira de pensar, de sentir e de se comportar: nossa personalidade. Existem, entretanto, tipos de personalidade que nitidamente diferem da maioria e que trazem problemas. A Classificação Internacional das Doenças (CID-11), que está em sua décima primeira revisão, denomina-os de transtornos de personalidade. Os principais, a meu ver, são: paranóide, esquizóide, anti-social, emocionalmente instável tipo impulsivo, emocionalmente instável tipo borderlaine, histriônica, obsessivo-compulsiva, dependente e narcisista.
Há pessoas que não se encaixam por inteiro nesses tipos, mas que apresentam alguma coisa deles. Possuem, portanto, traços de personalidade paranóide, histriônica, etc.
- Como vocês não são alunos de um curso de psiquiatria, não precisam de conhecimento detalhado. Precisam de noções. Anderson nos trouxe dados que nos permitem conversar sobre a personalidade histriônica.
Passo a enumerar as características desse tipo de transtorno de personalidade: busca de atenção, emocionalidade excessiva, desconforto quando não é o centro das atenções, pessoa sexualmente provocante ou sedutora, com emoções superficiais e que mudam rapidamente, grande preocupação com a aparência física para chamar mais a atenção, discurso impressionista e carente de detalhes, teatralidade, dramaticidade, expressão exagerada de emoções, sugestionabilidade, influenciação pelos outros e pelas circunstâncias, percepção dos relacionamentos como mais íntimos do que o são na realidade.
- Júlia não deve apresentar todas essas características. Mas vamos esquecer Júlia e vamos guardar esta informação: há pessoas que apresentam traços ou, mais ainda, transtornos de personalidade, e é bom que vocês saibam disso – afirmo.
- Acho que as mulheres são mais histriônicas que os homens – crê Diego.
- Nós, psiquiatras, também achávamos. Porém, pesquisas recentes passaram a relatar taxas similares entre homens e mulheres. São homens que encantam as pessoas por sua animação, aparente sinceridade, sedução. Todavia, por não tolerarem críticas, acabam freqüentemente se atritando. Ligam e desligam suas emoções com inusitada rapidez, a ponto de parecerem fingidos. Podem se mostrar machões e alardear habilidades físico-atléticas. Enfim, querem também ser o centro das atenções e revelam uma emocionalidade exagerada.
- E o galinha, professor? Assim como o Diego e o Anderson... – fuxica Jackson.
- O galinha pode ser muitas coisas mais – instigo.
- Devo alertar Júlia sobre alguns desses seus traços histriônicos, como essa necessidade permanente de chamar a atenção? – preocupa-se Anderson.
- Provavelmente você não vai conseguir calar sobre algumas coisas que te desagradam na Júlia ou em outra garota que estiver a teu lado. Mas, em se tratando de alteração na personalidade, pouco adiantará.
- Júlia ficará magoada e raivosa – acredita Diego.
- Mas... se é fato? – insiste Anderson.
- A pessoa não vê como fato – contesto. – Acreditamos que o nosso jeitão de ser é o que tem de ser. É natural em nós, sintonizamos com ele. Guardem os termos: “ego-sintônico” e “ego-distônico“. Quando algo sintoniza com o nosso eu, não vemos por que mudar. Quando não sintoniza, aí sim, sofremos com isso, queremos mudar.
- Tenho vontade de dizer à Júlia: “Você está sempre procurando ser o centro das atenções” – confessa Anderson.
- “Se as pessoas olham para mim, me colocam no centro é porque querem olhar para mim e me colocar no centro. Não faço nada para conquistar a admiração dos outros, apenas sou espontânea! Você está é com inveja!” É isso que se ouve como retorno – desaconselho.
- O que fazer? – roga Anderson.
Na saída, pegamos chuva.
AVALIAÇÕES POR ETAPAS
Uma pausa para lembrar.
O curso RELAÇÕES INTERPESSOAIS INTELIGENTES explica que avaliamos "quem é esse a nosso lado" por etapas: traços de personalidade, nível de maturidade, defeitos humanos, qualidades humanos, ética e moral.
O REDUCIONISMO E O EXÍLIO DO IMAGINÁRIO
- Goethe e Napoleão foram contemporâneos. Creio que o escritor alemão faleceu em 1832. Inclusive, foi Napoleão quem fez com que Goethe, finalmente, casasse, aos cinqüenta e sete anos, com Christiane, concluindo um namoro de dezoito anos.
- Dezoito anos?! – espanta-se Mirla. – Tenho pavor desses caras que ficam enrolando a mulher.
- Durante a invasão napoleônica à cidade de Weimar, alguns soldados saquearam casas. Dois deles, alcoolizados, arrombaram a casa de Goethe e ameaçaram matá-lo. Christiane foi quem o salvou. Ofereceu objetos valiosos aos invasores e os convenceu a irem embora. Cinco dias depois, Goethe oficializou sua relação com ela.
- Por cagaço! – ri Mirla.
- Tenho feito de tudo para esquecer Felipe. Mas quando consigo não pensar nele me vem um vazio... Escutem... – Larissa abre um exemplar do Werther – Escutem a carta de 26 de outubro: “Ah! Este vácuo. Este vácuo terrível que sinto no meu peito! Às vezes digo entre mim: se ao menos uma vez me fosse dado apertá-la contra o peito este vácuo todo inteiro seria preenchido”.
- Larissa, ao renunciar à paixão, nós nos vemos afastados, exilados de nosso imaginário. Nosso imaginário é, talvez, o que há de mais maravilhoso e poderoso que nossa espécie tem. Sem minha imaginação não conseguiria ser feliz – revelo.
- Jorge, tudo o que eu imaginei de maravilhoso na relação com um homem vi em Felipe!
- Quis ver. Você colocou em Felipe. Estamos a falar dessa fabulosa capacidade que você tem de imaginar criativamente um ser encantador.
- Ele não é tudo isso, mas...
- Vamos recordar a lenda de Narciso? Quantas vezes já fiz isso! – enfada-se Mirla.
- Larissa, num primeiro momento é importante você tentar separar Felipe de tua maravilhosa imaginação. Separe-se de Felipe, mas não dos belos sonhos construídos por tua imaginação – recomendo.
- Por isso é que se diz que a melhor cura para a paixão é outra paixão – lembra-se Mirla. - Ou seja, continuar com sua imaginação. Colocar toda aquela maravilhosa produção interna nossa em cima de outro.
- Como fazer isso?! – exaspera-se Larissa.
- Em teoria é fácil – acudo-a. – Só em teoria. Nosso desejo continua forte, esse é o ponto. Por que desejamos Narcisos? A resposta é individual e aí é que entram as psicoterapias.
- Um reducionismo – comenta Mirla. – Robson fala comigo como se eu fosse tudo. Tudo é a soma de outras tantas coisas que não eu: a brisa do mar, conversar aqui com vocês, brincar com uma criança, viajar para Bombinhas, mergulhar na praia do Sarcófago.
- Todos temos dentro de nós uma força que nos leva ao reducionismo da paixão, à busca do narciso – insisto. – Todavia, não há como negar, a paixão adequada é a dirigida a esse fenômeno amplo e tão cheio de nuanças ao qual chamamos de “vida“.
- Quero voltar a experimentar o prazer que vem de todas as inúmeras coisas boas desta vida. E quero manter comigo minha capacidade de imaginar príncipes – murmura Larissa. – Gosto de imaginar príncipes. E daí? – levanta a voz - Gosto não se discute!
NÍVEL DE MATURIDADE
- Pati tomou a iniciativa de me telefonar. Disse: “Faz bem pro ego da gente quando alguém liga, não?”
- Diga logo como é que ela é? – insiste Diego.
- Morena, magrinha, quieta, meio derretida... gostosinha. Adivinhem como ela soube o número do meu telefone?
Diego levanta as sobrancelhas.
- O Morcego também estava na academia num aparelho entre a Pati e eu. Fiz de conta que queria fazê-lo decorar o número de meu celular. Dizia: “É fácil: os primeiros números combinam com os últimos, os do meio combinam entre si”. Repeti exaustivamente o número. Naquela mesma noite a Pati me ligou de um telefone público.
Jackson conta que o que mais o atraiu foi um gesto. Na academia havia um menino de uns nove anos que, cansado depois de brincar num aparelho, se deitara de costas no sofá com os braços estendidos além da cabeça. Pati, com seu jeito derretido, entrelaçou seus dedos com os do menino, puxando-os lentamente: “Viu como é bom? Relaxa”.
- Desejei estar no lugar do menino. E consegui. Já fui duas vezes ao apartamento dela. Só que tem um probleminha: ela é casada.
- Casada! – inquieta-se Anderson – Em mais uma fria tu te mete! E por que não num motel?
Jackson conta que Pati só aceita transar na sua própria cama e depois da meia-noite. Que o marido viaja muito e que ela não gosta de dormir sozinha. Às vezes, inclusive, uma sobrinha vem lhe fazer companhia. Na segunda noite que posou com ela, o marido lhe ligou. Pati fingiu estar sonolenta e pediu que lhe trouxesse óculos de sol que combinassem com sua blusa azul. Ela tem coleções de óculos, de calçados, de brincos, de pulseiras, de tudo. Contou-lhe diversas vezes sobre a decoração da igreja por ocasião de seu casamento. Aliás, foi na capela do colégio onde cursara o primeiro grau. Pati diz que o marido é bom, que lhe faz todas as vontades, mas que é sem graça viver com ele: “É muito adulto”.
- Muito adulto?! – ri Anderson – Nunca tinha ouvido tal defeito.
Aproveito para comentar:
- Já falamos sobre traços de personalidade a propósito da nova namorada do Anderson. A Pati nos faz pensar em nível de maturidade, outro fator importante para conhecermos alguém.
Explico-lhes que avaliamos o nível de maturidade observando uma série de fatores, entre outros: tipos de interesses, o grau de responsabilidade e estabilidade com que se vincula às pessoas e às atividades; pelo funcionamento do seu eu, do seu ego, especialmente no que se refere ao processo de pensar, que pode ser dividido em primário ou secundário; pela prova da realidade e pela forma como maneja as pressões internas e externas.
Por processo primário entendemos a tendência à gratificação imediata de um impulso ou desejo. E esse desejo se desloca rapidamente para outra coisa. A criança vê um chocolate no supermercado e quer comê-lo imediatamente, sem se importar se o almoço já está próximo. A mãe, então, a distrai alcançando-lhe um brinquedo.
- O marido da Pati reforça o processo primário ao lhe fazer todas as vontades – matuta Anderson.
Não existe no pensamento de processo primário um sentido de tempo, ou uma preocupação com o tempo. Passado, presente e futuro são o mesmo. Exemplo: a mulher que, por uma frustração atual, puxa coisas do passado e até lança acusações futuras.
- A Júlia! – aduz Anderson - Se eu cometo uma desatenção agora, ela me acusa por mais outras que eu nem lembro mais da semana ou do mês passado.
- Outra característica do processo primário é a troca de interesse rápida: apaixona-se por alguém hoje e, se a relação não anda bem, apaixona-se com a mesma intensidade por outro alguém em seguida.
- A Pati consegue algumas coisas com o marido e outras com o Jackson – retoma a palavra Anderson.
Explico que o processo primário é a modalidade predominante de pensar de uma criança. Porém, em certa medida, persiste ao longo de toda a vida.
Já o processo secundário consiste na capacidade de retardar a realização do desejo até que as circunstâncias lhe sejam mais favoráveis. No adulto predomina um mecanismo mental que Freud, em 1905, chamou de sublimação: nosso eu normalmente funciona de modo a conseguir o máximo grau de satisfação dos desejos compatíveis com as limitações impostas pelo ambiente. Sublimação significa adequar à realidade algum desejo que não possa ser realizado direta e imediatamente. Há uma negociação entre nosso desejo e as possibilidades de sua concretização na vida real.
Não é possível afirmar com precisão: aqui termina o processo primário e aqui começa o secundário. A passagem é gradativa. Em certas situações muito difíceis, podemos voltar a usar mais o processo primário: o sujeito vai a um pai-de-santo, a alguém que, por uma promessa de milagre, “conseguirá” que ele realize seu desejo imediatamente.
- Memorizem: processo primário, processo secundário e teste da realidade. Três conceitos importantes para se avaliar o nível de maturidade de alguém. O teste da realidade... vou falar nele outro dia.
Aproveito para recordar que avaliamos o nível de maturidade também pelo tipo de interesse da pessoa. No caso, apenas namorar como quem inicia a adolescência. Lembro que a adolescência é um período de transição entre a infância e a vida adulta, um ensaio para a vida que vem a seguir. Há uma falta de permanência, de compromissos consistentes. É tênue o grau de responsabilidade e estabilidade com que o adolescente se vincula às pessoas e às atividades. Assumem-se compromissos, porém eles não têm o mesmo grau de investimento que quando na fase adulta. É uma sensação de não-ser-totalmente sério. Não importa que algumas coisas que o adolescente esteja fazendo possam ter sérias conseqüências na sua vida. A sensação predominante é de que tudo não passa de uma brincadeira.
- A Pati... – cita-a Jackson.
- E o Jackson – ri Diego. – Nosso amigo aqui brinca de desenvolver relacionamentos afetivos.
- Eu mereço – geme Jackson.
Complemento descrevendo a adolescência como uma época de experimentar diferentes eus. É um processo revolucionador da personalidade. Após vivenciá-lo, alcançamos uma identidade mais ou menos definida, característica do adulto.
Ainda explico que a maturidade também tem a ver com os mecanismos que o indivíduo usa para lidar com as ansiedades, os conflitos, os estressares, tanto internos como externos. Inicialmente chamados de mecanismos de defesa do ego, também são nominados como formas de manejar as pressões. Entre os mais maduros encontramos a sublimação, a antecipação e o humor.
Exemplo de sublimação: esportes de contato para canalizar impulsos agressivos, ou seja, canalizam-se sentimentos destrutivos para um comportamento socialmente aceitável.
Através da antecipação, como o nome diz, o indivíduo antecipa em pensamento as conseqüências de possíveis eventos futuros, buscando encontrar soluções alternativas e realistas.
No humor, o sujeito salienta os aspectos divertidos ou irônicos do estressor.
Porém, outras defesas ou formas de manejo são menos maduras ou, até mesmo, são bem imaturas. Entre outras: negação, onipotência, projeção, deslocamento.
Na negação, o indivíduo recusa-se a reconhecer algum aspecto doloroso da realidade externa ou da experiência subjetiva que é visível aos outros.
Na onipotência, como que faz de conta que é detentor de poderes que não tem, como se fosse superior aos outros. “Comigo isso não acontece”, afirma um adolescente que corre de moto pela cidade ao saber que determinado colega motoqueiro se acidentou e morreu.
Na projeção, o indivíduo atribui a outro seus próprios pensamentos, desejos ou sentimentos inaceitáveis.
No deslocamento, há a transferência de uma emoção de um objeto ameaçador para outro menos. Por exemplo, um homem com câncer de próstata concentra todo seu medo na questão: a cirurgia vai deixá-lo impotente? Já a possível presença de metástases irremovíveis, que significariam o fim de sua vida, não lhe desperta medo e sequer merece sua atenção.
HÁ PAIXÕES COM PREÂMBULO
- O Robson disse, quando eu ainda aturava conversar com ele, que antes de me conhecer já ouvira falar de mim. O dentista que o atendia e atendia a mim disse-lhe: “Aproveite o calorzinho da cadeira. Acaba de ser esquentada por uma bundinha nota A” – revela-nos Mirla.
Rimos.
- O nosso dentista tem o hábito de classificar as mulheres e suas partes em A, B, C, D e E.
- Exibida! – é Bebel, a que não se apaixona, hoje presente ao encontro.
Mirla usa um vestido que sugere alegria. O tecido leve, as cores vistosas enchem-na de feminilidade. Não a sinto exibida, é bom gosto mesmo.
- Há, em boa parte das paixões, preâmbulo – comento.
Todas já haviam concluído a leitura do livro de Goethe, das cartas que Werther escreve para seu amigo Guilherme, onde encontramos em minúcias o que se passa na mente de quem vive uma oceânica paixão. Uma aula de semiologia.
- Muitas vezes o início da paixão se faz já antes do encontro: recém ouvimos a história da bundinha nota A. Pois bem, Werther dirige-se de carruagem para um baile campestre e ouve de uma amiga: “Vais conhecer uma linda moça”. “Cuidado”, acrescenta outra, “não vá enamorar-se dela”. “Como assim?”, pergunta Werther. “Ela já está noiva e de um rapaz distinto”.
- Robson me disse que também pesou o fato de, na época, um amigo dele, casado, viver me elogiando.
- O Felipe anda com uma legião de mulheres atrás dele, não é, Larissa? – intervém Bebel.
- É um don-juan. Não sei se isso me atraiu... talvez.
- Nós todas já comentamos que, quando sós, não atraímos tanto quanto quando temos alguém. Se alguém me quer, todos me querem. Se ninguém me quer, ninguém me quer mesmo. – Ri .... – Ou é o complexo de Édipo em ação, hein, professor?
- Deixemos os complicados complexos para as psicoterapias. A paixão dividida em três capítulos: antes do encontro, os encontros amorosos e o início do fim da paixão.
- Antes de encontrar Felipe eu já sabia que era um homem muito disputado. Elogiavam-no: “um gato”. Mas já me diziam que ele não se prendia a ninguém.
- Pois então guardem: na fase que vamos chamar de “antes do encontro”, ocorre o fenômeno da indução ao sonho e o da informação da realidade. Ouvimos fofocas que nos levam a um imaginário fabuloso: uma deusa, um príncipe. Mas, ao mesmo tempo, um pedaço ingrato da realidade, um pingo de realidade borra esse imaginário. Há quase sempre um informante, alguém que diz a Werther: “Carlota é noiva”. Alguém que diz a Larissa: “Felipe não se prende a ninguém”.
Inúmeras lembranças de preâmbulos surgem em nosso bate-papo. Preâmbulos que foram realmente preâmbulos, preâmbulos que não foram preâmbulos de nada.
Deixo-as a conversar enquanto vou ao banheiro.
Ao retornar, vejo-as ao longe na mesa. Bebel chama atenção não só por ser a mais alta das gurias, mas também por seus longos cabelos loiros. Costuma vestir-se com roupas da cor azul de seus olhos. Nicole também tem os cabelos loiros, mas usa-os curtos, e assim não chama tanto a atenção. Aliás, mesmo sendo de beleza similar à de suas amigas, Nicole, não sei por que motivo, parece-se com aquelas mulheres escondidas. Sim, mulheres que, para evitar os olhares masculinos, aumentam de peso e se cobrem com roupas nada atraentes.
Quem Larissa quer, não a quer, penso enquanto caminho até meu carro. Mirla não quer quem a quer. Bebel não se apaixona. E Nicole? Nada sei de Nicole.
OPÇÃO QUE DEVE SER RESPEITADA
Apalpo no bolso o papel que encontrei há pouco dentro de uma revista da sala de espera de meu consultório com os dizeres: “Vou me matar. De surpresa”. Folha de ofício com colagem. Parecem letras usadas nas manchetes dos jornais.Uma brincadeira de mau gosto? Um pedido de ajuda?
- Nesta semana... - simula tosse Jackson - brochei duas vezes.
Após ouvir muitos risos e ironias, conta que fora a uma festa regada a muita coisa e, quando vira, estava indo para um quarto tipo despensa, que fica num anexo desta casa, acompanhado por uma mulher de uns trinta anos, Lorenice, que acabara de se separar. Anderson pergunta se não é “fulana”, uma magrinha de sardas, ex-mulher de um conhecido seu. Jackson não sabe.
- Quando só de calcinhas com os seios, diga-se de passagem, apetitosos, de fora, brochei.
- Não diga!! – exclamam em coro Anderson e Diego.
Mas quem nunca brochou? Quem?! – levanta a voz Jackson. – Diego! Diga a verdade, Diego!
- Bem... eu poderia contar uma... mas já faz tempo... que interesse teria agora?
Diego, quando fala de si, o faz devagar e construindo frases inconclusas. Torna-se sério, penso. É o mais quieto dos três. Chega aos encontros vindo direto de seu trabalho. Solta a gravata, esfrega os dedos nas pálpebras como quem está cansado. À noite, seus cabelos pretos já estão desalinhados. Com freqüência, passa as mãos no rosto sobre as marcas deixadas pelas espinhas.
-. E não foi porque estava sem camisinha. Quando bebo acho que nada acontece comigo. Brochei porque brochei. Não posso pôr a desculpa no álcool, não havia bebido tanto assim.
Conta que, três dias depois, a mesma festa se repetiu e, de novo, ele se viu na despensa com a Lorenice e, de novo, nada. Inclusive tentou fazer com que ela o estimulasse, o que foi pior. Ela disse que não gostava de pegar em pau mole:
- Já estava a meio-mastro... desandou de vez.
Jackson saiu dessa festa e foi direto para o apartamento da Pati. Lá, após insistir bastante, ela cedeu e ele teve ereção normal.
- Professor, por que broxei com a Lorenice?
- Por algum motivo justo - respondo sem muito pensar.
Não participo das risadas. Na verdade, estou dividido entre ouvi-los ou concentrar-me nas minhas preocupações em relação ao bilhete que apalpo em meu bolso. Numa sala de espera freqüentada por pessoas deprimidas qualquer referência a suicídio deve ser levada a sério.
As risadas prosseguem.
- Estou falando sério. Quando isso acontece, tem alguma razão. É melhor que a transa não ocorra. Temos de respeitar essa decisão, mesmo que seja por um motivo do qual não tenhamos consciência.
Bastará telefonar para os familiares de todos os pacientes com risco de suicídio atendidos nos últimos dias e solicitar que redobrem a vigilância.
Já me despedi dos guris quando me vem a mente o fator surpresa. Quase sempre quem se suicida pega todo mundo no contrapé. Devo lembrar todos os familiares do contrapé.
PERSONALIDADE DEPENDENTE
Com os guris também já havia falado sobre Goethe e citado as três fases da paixão, quando Diego, em viagem pela Inglaterra, confessou, via internet, que estava se apaixonando. Jackson, que recebe os e-mails, traz todos até nós.
Diego conheceu Rosária, uma mexicana, num curso de inglês em Londres. Ficara sabendo, por outra mexicana do curso, que Rosária era filha de alguém muito rico e que o pai a enviara a Londres para afastá-la do México. Por quê?
Nosso amigo percebeu que esta filha de milionários não se mostrava receptiva. A colega fez uma proposta a Diego: ela o apresentaria a Rosária se ele se comprometesse em descobrir e em revelar o mistério: por que seu pai a quer longe do México?
Quando apresentado, os olhos castanho-escuros da mexicana penetraram em sua mente e em seu coração. Diego notou que ela o percebera: um discreto sorriso de triunfo iluminou seu rosto.
- O amigo de vocês revela capacidade de captar as sutilezas das relações. Ele percebeu que a mexicana percebeu.
- Gosto quando noto que a gata percebe e se envaidece de meu olhar de desejo – confessa Jackson.
- Claro – digo. – A conquista teve início. Não esquecemos alguém que um dia nos desejou. Ficamos, de certa forma, vinculados para sempre.
- Não tanto assim, professor – sorri Jackson.
- Mais de uma vez em minha vida ocorreu o seguinte: passado muito tempo reencontro uma mulher que desejei com o olhar e noto que ela me olha com um olhar bom, me dá a abertura que antes não me dera quando, quem sabe, já nem mais desejo essa abertura.
- Vou ler este e-mail: “Que sorte ter estudado espanhol! Meu inglês consegue ser pior que o dela. Ela acabara de ver na tevê uma novela brasileira. Daí que achamos algum assunto em comum. De cara fui dizendo que não vira nada na Grã-Bretanha que fosse mais bonito do que uma mexicana. E que me dera conta, naquele momento, de que o idioma que desejava praticar era o espanhol”. Bem, não vou continuar a ler toda a baboseira que o Diego sempre diz para as mulheres e que nós já estamos fartos de saber.
- Vocês que o conhecem bem, ele vai conseguir? – pergunto.
- Paciência ele tem, e muita. Acho que consegue – responde, Anderson.- Por que eu acho que, para ganhar uma mulher rica e de outro país, só com muita paciência.
- Eu sou mais na base do: “Ou dá ou desce” – delata-se Jackson.
- Falando em ter ou não paciência, estou recordando da cena de um filme imperdível. Recordo porque o vi de novo há poucos dias. Do diretor Sergio Leone, aquele que se consagrou com os faroestes italianos. Como é que age um apaixonado que é mafioso? Era uma vez na América responde a essa questão.
Relato o filme. Robert De Niro representa David Nodles, que é apaixonado por Deborah, representada por Elizabeth McGovern. Uma paixão de infância e de adolescência nunca plenamente correspondida. Após muitos anos, encontram-se em Nova Iorque. Nodles manda reabrir um restaurante fechado com frente para o mar: treze garçons, uma orquestra com vinte músicos só para os dois. Quando entram no grande salão das mesas, Deborah vê oitenta mesas redondas, pequenas, ornamentadas com flores, com apenas duas cadeiras em volta. Nodles sabia do sonho de infância de Deborah de um jantar só para dois num restaurante luxuoso. Mas em que canto ela gostaria de ficar? Assim, ela tinha a sua disposição mesas em todos os lugares do salão. Os garçons servem, a orquestra faz sonar suaves acordes. Nodles tenta conquistá-la. Ela apenas lhe diz que parte amanhã para Holywood: quer chegar ao topo da carreira recém-iniciada de atriz. Na cena seguinte os dois são vistos lado a lado no banco traseiro de uma limusine.
- O que faz um mafioso rejeitado ao levar sua musa para casa?
- De forma lícita ou ilícita, afirma o mafioso, ele a colocará como estrela em algum filme de Holywood. Basta que fique com ele – opina Anderson.
- Também não. O mafioso não tem tolerância para postergar seus desejos. Seu nível de maturidade é o de um menino...
- Força ela a fazer sexo com ele – apressam-se os dois.
- Muito bem, acertaram. A propósito, convivemos com diversos níveis de maturidade dentro de nós, em áreas diferentes de nossas relações com a vida. Posso ter um medo infantil de altura e, sendo cirurgião cardíaco, ter coragem e maturidade suficiente para abrir o tórax de um ser humano.
- Se entendi, há pessoas que são infantis só no que se refere às relações amorosas. Mas há outras que são infantis de forma mais generalizada – reflete Jackson.
Descrevo-lhes características da personalidade dependente, a começar pela necessidade excessiva de ser cuidado. O desejo de que alguém assuma a responsabilidade pelas principais áreas de sua vida. Dificuldade de tomar decisões sem um grande número de conselhos e reasseguramentos de parte de outra pessoa. Vai a extremos para obter apoio e carinho. É incapaz de viver só. Tem dificuldade de fazer coisas por conta própria.
PERSONALIDADE ANTISOCIAL
O garçom deposita coca-cola light com limão e gelo sobre a mesa. Fiz bem em telefonar daqui mesmo do bar para o marido da paciente que vou chamar de Rose, o único familiar com quem eu não havia conseguido contatar. Por sinal, pareceu-me o mais interessado em verificar se a ameaça “vou me matar...” vinha de sua esposa. Homem sério, falei com ele apenas duas vezes. Deve estar pensando: “Poxa! Logo agora que ela finalmente parecia ter superado a depressão... Será que não poderei nunca baixar a guarda?”
Rose sofre de depressão-ansiosa e, após três anos e várias trocas de psiquiatra e de antidepressivos, apresenta-se assintomática e feliz. O quadro começou seis meses após o nascimento de sua única filha. Com a doença, teve de deixar para sua mãe o cuidado da nenê, abandonou sua loja e quase abandonou a vida ao tentar duas vezes o suicídio ingerindo comprimidos.
Bebo um gole pequeno evitando trazer à boca uma pedra de gelo.
Observo que Mirla acaba de chegar e está a conversar numa mesa com um homem de cabelos bem brancos, alto, bem magro.
Recebo telefonema do homem sério marido da Rose. Acaba de conversar com ela. Está aliviado, tem certeza de que é sincera sua resposta negativa. Não foi ela. Passa o telefone para Rose, que confirma. Rose devolve o telefone para o marido, que diz se sentir agora livre para fazer o que vinha postergando por causa do estado da esposa.
- Já ouviram falar de Aníbal? - pergunta-nos Mirla.
- Aquele general do... exército de elefantes? – hesita Larissa.
- O maior guerreiro de todos os tempos. Lá pelos anos duzentos a.C., derrotou o maior exército até então organizado por Roma.
- Por que enaltecer quem faz a guerra?! – esbraveja Nicole.
- Por que o ser humano, quer você queira, quer não, tem atração pela adrenalina produzida quando se luta, quando se corre risco de vida... – tenta defender-se Mirla. – Quando você sai com um cara desconhecido há sempre risco...
- Que comparação! – corta Nicole.
- Homo lupus homini – intrometo-me.
- O quê?
- “O homem é o lobo do homem”. Cinqüenta reais para quem acertar o nome do autor da frase.
Nenhuma sabia. Dei prazo até nosso próximo encontro.
- O homem é o lobo da mulher – brinca Bebel.
- Se for um psicopata... é mesmo – argumenta Mirla.
Aproveito a deixa:
- As mulheres têm razão em temer os psicopatas, ou, como a psiquiatria denomina atualmente, os portadores de personalidade anti-social. De cada cem mulheres, uma apresenta o distúrbio. De cada trinta homens, um.
- Cuidado, Bebel, de cada trinta com quem você sai um é – caçoa Mirla. – Ainda bem que você não se apaixona.
- Nunca vi mulher nenhuma fazer tanto homem de bobo. A Bebel é a minha vingança! – diz com ênfase Larissa.
- A Bebel, professor, não é daquelas assexuadas, amorfas, que não se ligam, não se apaixonam por nada. Deixa eu defender minha amiga – apressa-se Nicole.
– Ela gosta da vida. Sabe assim?
- Bebel, você não se apaixona pelos homens, mas e os homens? Os homens se apaixonam por você?
- Não muito.
- Como? Se você é bonita, inteligente, afetiva, como todas que estão aqui?
- Olha a cantada! – mexe comigo Nicole.
- E cheia de vida, o que torna a pessoa ainda mais atraente.
- Atraio paixões calmas. Das outras, fujo.
Rimos.
- Sim, fujo!
- A Bebel é a rainha das amizades coloridas! – brada Mirla.
Bebel, por alguns segundos, tapa o rosto com o cardápio. Ao destapá-lo, faz cara de quem está envergonhada, mas não está. Parece-me até um pouco envaidecida ao se perceber admirada pelas amigas. Ergue alguns fios de seu cabelo loiro, movimenta as sobrancelhas, fecha as pálpebras encobrindo o azul de seus olhos e, finalmente, levanta o dedo pedindo a palavra.
- Há quem confunda amizade colorida com promiscuidade. Conhecer um carinha numa boate e já ir transar com ele? Jamais! Só vou para cama com alguém que conheço muito, alguém de quem posso dizer: “Este é meu amigo!”
- Uma relação que se faz aos poucos. Com tempo para descobrir “quem é este a seu lado” – aprovo. – A pressa é mesmo inimiga da perfeição. Li que até o Rubens Barrichelo citou esta frase.
Risos.
- O Rubinho é um gato. - suspira Larissa.
- A propósito, estou em dúvida: levo adiante a amizade com Danilo? – questiona-se Bebel.
- Se a torna colorida? – insinua Mirla.
- É. Além de ser um homem bonito, é um pouco atleta. Ótima conversa em mesa de bar, às vezes bebe um pouco demais. Não sei como é na cama, mas parece um homem sensível. Contudo, Danilo tem uma história recente que me assusta.
Bebel conta que seu novo amigo, segundo ele mesmo lhe confidenciou, andou aprontando muito quando cursava os primeiros dois ou três anos da faculdade. Deixou sua cidade para vir cursar a universidade e, no início, manteve-se como sempre fora: quieto. Não estudou muito porque tinha dúvidas sobre se era mesmo o que queria. Pouco bebia, quase não freqüentava a noite. Seu lazer era o esporte. Andava um pouco deprimido e não fazia maiores amizades. Passou a visitar nos finais de semana a sua cidade, sendo aceito por um primo mais velho e sua turma. Esse primo era famoso por provocar brigas, corridas de carro e bebedeiras. Danilo não tem irmãos, só uma irmã mais nova. Com esse primo mantinha uma relação de irmão mais velho e, em geral, se sentia rejeitado. Admirava sua coragem por se meter em brigas e correr toda a ordem de riscos, seu sucesso com as meninas e sua popularidade na cidade. Nunca estava só, sempre rodeado e a contar e rir de suas estripulias. Entretanto, não gostava do jeito como o primo o tratava, ora o enaltecendo, ora o ridicularizando na frente de seus amigos. Em geral, ele se submetia calado, mas houve vezes em que reagiu, quando então se agrediram fisicamente. Nas primeiras férias da faculdade, o primo e sua turma o acolheram como um igual. No retorno às aulas, Danilo estava transformado. Começou a freqüentar a noite, a beber, a promover pegas de automóvel, a brigar.
- Jorge, sabe o que ele chegou a fazer? Ir a restaurantes com colegas e, por iniciativa dele, saírem sem pagar. O primeiro ia ao banheiro, o segundo ia em seguida, o terceiro idem, e assim por diante. De repente, corriam até o carro e saíam em disparada.
- O primo também fazia isso? – investiga Mirla.
- Não sei. Danilo roubou placas de sinalização, mudou outras de sentido. Roubou provas na faculdade. Namorava duas meninas ao mesmo tempo. Envolveu uma colega, fazendo-a se apaixonar e, após uma semana de namoro, sem nenhum aviso, rompeu deixando-a com a auto-estima lá embaixo, sentindo-se humilhada perante a turma.
- Um cachorro! – tacha-o Larissa.
- E esse comportamento durou dois anos. Só a partir do quarto ano do curso endireitou. Agora quase não sai à noite, pratica esportes e acha que não está no momento de ter um namoro firme. Daí que...
- Prefere uma amizade colorida contigo – intromete-se Nicole.
- É isso. Dá para confiar? É um psicopata?
Expliquei-lhes que, antes de emitir qualquer opinião, se faz necessária a confirmação de alguns dados. Fora só nesse período que Danilo tivera sérios distúrbios de conduta? Para receber o diagnóstico de personalidade anti-social o indivíduo tem de ter, pelo menos, dezoito anos e já ter apresentado algum distúrbio de conduta antes dos quinze anos. Distúrbio de conduta no sentido de violar normas ou regras sociais importantes e adequadas à idade. Podemos dividir em: agressão a pessoas e animais, destruição de propriedade, furto ou séria violação de regras.
Quem tem personalidade anti-social não se conforma em funcionar dentro das leis vigentes em seu meio. Freqüentemente, faz coisas que constituem motivo para detenção, quer seja preso, quer não. Não respeita os direitos, os desejos e os sentimentos dos outros. Não possui empatia, portanto não se coloca no lugar dos outros. Não sente culpa ou remorso pelos seus atos. Arranja explicações superficiais como justificativa por ter ferido, roubado ou maltratado alguém: “a vida é injusta”, “perdedores merecem perder”, “era um boboca mesmo”. Para obter dinheiro, sexo ou poder, engana e manipula os outros. Mente, finge, faz qualquer coisa sem ética alguma. É irresponsável em tudo: no trabalho, em honrar compromissos financeiros. É impulsivo. Não pensa no futuro. Em geral, é irritado e violento. Pode mostrar um encanto superficial e ter facilidade com as palavras.
Mirla retira-se de nossa mesa. Meu assunto deve estar enfadonho. Melhor concluí-lo.
- Muitos dos que possuem personalidade anti-social apresentam, concomitantemente personalidade narcisista, histriônica ou borderlaine.
Mirla conversa com o homem de cabelos brancos.
- Bebel, Danilo apresenta encanto superficial, auto-estima enfatuada e falta de empatia? – pergunto.
- Parece-me que não, mas vou observar melhor quem é este ao meu lado.
- Lembrei, Jorge, lembrei! – Mirla retorna radiante à mesa. – Thomas Hobbes.
- Ganhou os cinqüenta – lastimo pondo a mão na minha carteira.
Enquanto ela se exibe com a nota de cinqüenta em meio às expressões de inveja das amigas, o homem de cabelos brancos caminha em direção a nossa mesa.
- Moça – diz ele ao chegar – esqueci de te dizer que Hobbes é considerado o “Pai do Estado moderno”.
- Você deveria dar a nota de cinqüenta para este senhor! – afirma Bebel.
Mirla, constrangida, quer fazê-lo. René, o visitante de nossa mesa não aceita, mesmo compreendendo sua origem. Ele e eu nos consideramos hobbesianos e iniciamos uma daquelas conhecidas conversas filosóficas de mesa de bar. Sem dó das gurias.
Admiramos esse filósofo inglês que viveu noventa e um anos (1588-1679), um realista, alguém que viu a natureza humana tal qual ela é e, a partir daí, propôs as diretrizes do Estado moderno. Para ele, a inimizade e a disputa são comportamentos rotineiros na vida dos homens. Sempre que desejam algo que não está disponível para todos, passam a brigar pela posse deste algo. A guerra é sempre possível. Ontem, hoje e amanhã: sempre houve, há e haverá guerra. Porta aberta, casa vazia, etc.
Entretanto, os homens sofrem muito com as brigas e as guerras. E as conseqüências são trágicas. Então, os homens desejam, sinceramente, que a tragédia não se repita. É o momento em que se aceita um Estado.
Para Hobbes, o Estado tem de ser soberano, tem de regular a vida econômica e ser representativo. Soberano porque nem um poder deve estar acima dele. Regular a vida econômica porque é na disputa pelos bens econômicos que os homens mais brigam e começam as guerras. Representativo no sentido de os cidadãos acreditarem que este Estado existe pelas suas vontades, que suas ações são as ações que os cidadãos tomariam.
René complementa:
- O poder de Estado formava-se pelo consenso, raramente, ou pela submissão a alguém ou a um grupo poderoso. Porém, o consenso não dura e outro alguém ou outro grupo pode passar a ter mais poder. E lá se vai o poder estabelecido e o homem volta a ser o lobo do homem. É mais estável o Estado que se funda num contrato aparentemente consensual, numa Constituição. Essa era a idéia de Hobbes.
- Por isso – complemento – nós que acreditamos no Estado moderno somos hobbesianos.
- O senhor se considera um lobo, um lobo vestido? – pergunta rindo Bebel ao homem de cabelos brancos.
- Um lobecão, apenas um lobecão.
Já em pé, ao nos despedirmos, conto da vez em que, estando próximo à Torre de Londres, comprei uma rapadura num quiosque e, para me defender do frio, fui comê-la dentro de uma bem aquecida loja de souvenirs. Mastigava e, pela porta envidraçada, observava as pessoas encasacadas. Observei um guarda. Por azar, nesse instante, ele passou a me observar. Ato contínuo, disparou em minha direção e me pôs para fora da loja. Do lado de fora, vi que havia uma placa dizendo ser proibido comer dentro da loja.
Conto-lhes também do jogo de futebol a que assisti em Selrhust, nos arredores de Londres. Campo sem alambrado, nem um grito, nenhuma vaia. O Aston Vila precisava ganhar, mas empatou. As torcidas adversárias saíram juntas do estádio. Os seres humanos deixaram de ser lobos na Inglaterra? Por quê? Porque o Estado os trata como se fossem lobos. Câmeras de vídeo em todo o estádio e nas ruas próximas...
- Qualquer deslize e a mão do guarda aperta com firmeza teu braço. Só assim conseguimos conviver numa boa uns com os outros – concluo.
- Além da coerção hobbesiana, eu acrescentaria que, para convivermos uns com os outros, numa boa, é indispensável também um... - ri irônica Mirla – um... bom desodorante. Aliás, coisa que todos nós, já notei, voluntariamente usamos.
OPÇÃO QUE DEVE CONTINUAR A SER RESPEITADA
– Mas e a Lorenice?
- Ela, por si só, atrai. Você a conhece. Aquela de sardas. Ela confirmou que foi casada com aquele conhecido teu do qual você me falou.
- Ah! Conheço ela. O ex-marido sempre foi metido a conquistador. Traía ela adoidado.
- É esse mesmo, ela se queixa disso. Não sei o que houve comigo. O momento e o próprio ambiente eram mais ou menos propícios. Pela colocação do professor, só resta o fator eu mesmo. Tenho de olhar para dentro de mim – diz Jackson mudando de voz para ironizar -, meu eu achou melhor oh! – faz aquele sinal de encolher o dedo indicador.
Voltando a falar nas causas de uma brochada, explico que a atração sexual só aparentemente é geral: os homens se sentem atraídos por mulheres e as mulheres se sentem atraídas por homens. Entretanto, cada homem se sente atraído por determinadas mulheres e cada mulher, por determinados homens. Portanto, há que se fugir da generalização grosseira e se buscar a percepção fina. Se o fizermos, evitaremos encontros propensos a não se desenvolverem.
- Vou passar a anotar num caderno o nome das mulheres que conheço pelas quais posso ter tesão e aquelas com as quais o mastro não levanta nem com a ajuda de 16.500 viagras – assegura Jackson.
- Aquelas que... conhecem a expressão? “Se me virem abraçado com ela, aparta porque é briga” – gracejo.
- Vocês leram no jornal sobre o sujeito que foi pego no aeroporto saindo do país com 16.500 viagras na bagagem de mão? Sabe qual foi a defesa dele? “É para uso pessoal”. Ora, professor, para este não há generalização grosseira! – levanta-se Jackson. - O cara come todas!
Rimos tanto a ponto de deixar para outro bate-papo a questão das atrações perversas.
PERTURBAÇÃO DE CONDUTA
Mirla ajudou Bebel a obter informações sobre Danilo. Tudo indica que ele sempre fora correto. Seus amigos, antigos e atuais, lhe querem bem e dizem confiar plenamente nele.
Frente ao olhar intrigado de Bebel, esclareço:
- Não conheço Danilo, não vou falar nele especificamente. Acho inadequado avaliar alguém que não pediu para ser avaliado. Porém, podemos falar sobre o transtorno de ajustamento.
Explico que esse quadro tem como característica essencial o aparecimento de sintomas em resposta a um fator estressante psicossocial. Esses sintomas podem ser depressivos, ansiosos ou de alteração de conduta.
Um rapaz que sai de casa e vai viver longe de seus vínculos afetivos passa por um estresse psicossocial. Como vai se ajustar, se adaptar a essa nova situação? Isolado, sem amigos, recorre à identificação com o modelo que conhece e que lhe parece dar resultado. Alguém que nunca está só, sempre rodeado de ouvintes para a narrativa de suas estripulias. Chamamos um quadro assim de transtorno de ajustamento com distúrbio da conduta.
- Ufa! Posso investir em Danilo! – festeja Bebel.
- Hoje já tem transa... – maroteia Mirla.
- Quem já teve distúrbio de conduta poderá repetir – frustra Nicole.
- Teoricamente, numa situação semelhante, ele poderia recorrer de novo a este modelo. Talvez não recorra mais. Poderá encontrar e recorrer a outros modelos. Principalmente se ele não gostou do tipo de atuação que teve. Bebel é que pode nos dizer.
- Parece que ele não gostou, mas vou observar melhor.
- Veja se ele conta vantagem por ter tido duas namoradas ao mesmo tempo, ou se ele acha ridículo, tipo “como eu era um idiota, bobalhão, um merda!” – exemplifica Larissa.
Todos rimos.
- Não é fácil se chegar a um diagnóstico – constata Bebel.
- Às vezes é – digo sorrindo. – Uma vovó bem velhinha veio a minha procura. Já consultara outros médicos e o diagnóstico de sua doença ainda não fora esclarecido. Já tomara muitos medicamentos e nada. “Doutor, minha netinha listou os médicos que já procurei e os remédios que já tomei. É tão querida ela!”. A netinha, uma jovem de uns quinze anos que fazia trejeitos com o olhar, correu a me alcançar a primeira lista, a dos médicos. Começo a ler em silêncio: “Doutor Pé no Saco, Doutora Modes Puta, Doutor Pau no...” “O senhor está vendo, todos bons médicos e eu ainda continuo sem diagnóstico”, salienta a vovó. Em seguida, a querida netinha me alcança a lista dos medicamentos. “Bons remédios, o senhor vai ver”. Começo a ler em silêncio: “AASêmen, Novalgina na vagina...”
Aguardo que se acalmem as risadas e continuo:.
- O diagnóstico da vovó, a paciente, continuou difícil. Mas o da acompanhante, a querida netinha, uma barbada... Aliás, ela ainda me alcança mais uma folha, supostamente escrita pela vovó, onde leio: “Doutor, sou tão velha quanto tímida, por isto escrevo. Só vou melhorar se conseguir dar, dar, dar...”
- A netinha é o lobo da vovó! – Mirla dá uma gargalhada.
O INÍCIO DE UMA PAIXÃO
Peço água mineral com gás, limão e gelo no copo. Anderson avisou que irá atrasar. Jackson acaba de sair, esqueceu de trazer os e-mails de Diego. Eu? Eu penso que na vida, às vezes, é o acaso que decide.
Acabo de atender um homem de cinqüenta e poucos anos, que não está morto porque o telefone tocou bem no momento em que ele colocava a corda no pescoço. Sim, iria se enforcar. É viúvo e mora só numa chácara próximo a uma pequena cidade. Há alguns meses, seu único filho lhe deu um telefone que rarissimamente é usado. Naquela hora, com a corda no pescoço, sobreveio-lhe a dúvida: “Telefonema para mim?!” Nem se lembrava da existência de telefone em sua morada solitária. Reluta: “Atendo? Não atendo?” Decidiu-se por atender. Afinal, bastava largar a corda, descer do banquinho. Minutos depois, retornar, subir ao banquinho...
Se soubesse que era aquele negociante chato, chatíssimo, não teria abandonado o banquinho. Queria comprar o trator, não o usava mesmo. Respondeu que nada queria vender. O comerciante julgou que seria melhor conversarem pessoalmente. Desligaria o telefone e em cinco minutos chegaria à chácara. O “não-venha!” de meu paciente nem ouvido foi.
O que fazer? Será que em cinco minutos um enforcado morre? A última pessoa que desejava para lidar com seu corpo, chamar o filho, contatar a funerária seria aquele sujeito metido, intrusivo e chato, chatíssimo.
Junto com a água com limão engulo uma pedra de gelo e sinto gelar o meu esôfago.
- Professor! - cumprimenta-me Anderson ao cruzar pela mesa indo em direção ao banheiro.
Voltando ao meu paciente do telefonema salvador... O comerciante era tão insistente que, como não conseguiu convencê-lo, telefonou dali mesmo, de cima do trator, para o filho do meu paciente, pedindo-lhe que o ajudasse a fazer a cabeça de seu pai. Quando pai e filho conversavam, lágrimas correram... O comerciante exclamou: “Não é possível chorar tanto assim por um trator que você nem usa mais. Você não está bem”.
- Diego está perdendo o comando de seu namoro com a mexicana – Jackson joga sobre a mesa os papéis com os e-mails. - Pediu que os lesse para vocês.
Examinando-os concluímos que ele já está afetivamente envolvido. Passou da primeira fase, que eu chamo de “preâmbulo amoroso” ou simplesmente antes do encontro amoroso, quando ocorrem a “indução” e chegam algumas informações de realidade. A colega de inglês promoveu a indução ao falar coisas positivas sobre Rosária e, ao mesmo tempo, trouxe-lhe uma informação de realidade: algo fez com que ela fosse enviada para Londres pelo pai. O encontro amoroso se desenrola: vão a pubs, trocam confidências e carícias. Ou seja, vivem o início de uma paixão, a fase maravilhosa da descoberta.
Anderson, falando de si mesmo, confessa estar se dando conta de que os outros, de certa forma, decidem por quem nos deixamos apaixonar. Somos, sim, induzidos a gostar de alguém. Não nega que as dúvidas que tinha em relação a namorar ou não Júlia foram soterradas pelas frases dos amigos e conhecidos que diziam: “Que mulher!” Recorda que, no seu caso, o informante da realidade foi o próprio irmão de Júlia.
Jackson retorna à leitura dos e-mails de Diego: “Parece que a conheço há vinte anos e a cada dia que passo noto como nos encaixamos em tudo: desde o que comer no café da manhã, até na admiração de um quadro de Constable da Galeria Nacional”.
- Está lascado – sentencia Jackson.
- Lascado feliz – complementa Anderson. – A questão é: quem é a mexicana?
- O nosso amigo Diego se deixou apaixonar sem saber por quem – revelo minha impressão. – Como o Jackson observou, ele perdeu o comando. Nós só comandamos uma paixão bem em seu início. Há um momento em que ainda há volta. Em que há a possibilidade de esfriarmos um pouco, de ganharmos tempo com o objetivo de elucidar a questão: quem é ela, afinal? Depois, não há mais volta. Vamos ter de lidar com todos os sentimentos envolvidos. E a história de amor que se seguirá não sabemos bem qual será, porque não é escrita só por um, é escrita por dois. Às vezes, por mais ainda... os amigos...
- A sogra! – exclama Jackson.
Continuamos a ler os e-mails vindos de Londres: “Os mexicanos que estudam aqui, quase todos, querem conhecer minha namorada. Ela é realmente filha de alguém importante. Não sei se querem namorá-la, talvez queiram, na volta ao México, algum favor do pai dela. De qualquer forma, isso me irrita. Aliás, ontem na Oxford Street, quando alguém que passava caminhando na direção contrária a que íamos fixou os olhos em Rosária, eu sofri”.
Aproveito para citar alguém com quem muito aprendi:
- O mundo está cheio de olhares indiscretos com os quais tenho de partilhar minha musa. O mundo é meu rival. O mundo é uma imposição de partilha. Roland Barthes: Fragmentos de um discurso amoroso. Leitura obrigatória.
Continua Diego: “Quando ela conversa com aquele bando de mexicanos na escola de inglês, eu me sinto sobrando”.
- Conhecem aquela brincadeira: a música pára, falta uma cadeira, todos sentam, menos um que continua de pé, o bobo, o apaixonado – termino a frase invadido por um sentimento de piedade.
Diego: “Ela quis ir ao restaurante.... Mesmo rachando as despesas, não tenho grana para freqüentar tais ambientes”.
- Os pingos de realidade começam a estragar o sonho – acresce Anderson.
- No último e-mail ele pergunta se nós podemos lhe emprestar alguma grana. Na volta ele nos paga em prestações. O que acham? – pergunta Jackson. - Vamos pagar para ver até onde vai isto?
Concordamos que, para satisfazer nossa curiosidade, vale a pena investir algum dinheiro. Queremos saber quem é essa mexicana.
Diante daqueles jovens, sou eu o informante da realidade. Para que me escutem, preciso me manter audível. Qual a intensidade, qual a qualidade dos sons que emito? Não convém subestimar seus conhecimentos previamente adquiridos, nem afogá-los com excessivas informações técnicas. Também não quero ser aquele estraga-prazer. Porque, se quisermos, estragamos qualquer coisa humana, basta a toda hora assinalar que a inevitável morte acabará com todos nós.
Ou seja, há informantes e informantes. Há, sim, muitos que são perversos. Quando me especializava em psiquiatra, uma contemporânea de curso passou a me atrair. Porém, sem eu pedir, uma professora me contou que aquela que era objeto de meu desejo tivera um caso com um homem casado. Me fez mal ouvir aquilo. Percebi uma pitada de agressividade em minha informante ao me ver tentando esconder a decepção.
Ao sairmos do bar, Jackson nos retém:
- Tudo bem, vamos enviar o dinheiro.
Em casa, volto a pensar no homem da chácara...
Há muito que não era ouvido. Não penso que seja por culpa do filho ou de seus amigos. Pelas circunstâncias, quis continuar na chácara após ficar viúvo. O filho, assoberbado com seu trabalho, morando longe, pouco o via. Apenas a cada dois ou três meses uma visita. Como raramente circulava pela cidade, passava dias e dias completamente isolado. É duro não ser mais ouvido por ninguém. E quando se pensa que isso é fato definitivo...
O homem da chácara me fez reler uma poesia de Milana Aldárova, moscovita formada em filologia, que encontrei numa edição de 1990 da revista Literatura Soviética:
“Sepultavam a um suicida. / Era um dia frio de primavera. / Não sabia nada sobre o finado. / Porque andava sem rumo pelo cemitério. / E me aproximei por casualidade. / Era um dia sombrio e úmido. Estava por chover. / Soluços. Lamentos. / Uma mulher de luto / se afogava em gemidos. / ‘Por que fizestes o irremediável?’ / - perguntei ao finado sem despregar os lábios. / ‘Acaso não havia outra saída?’ / ‘A dor era insuportável’ / - disse-me em voz tão baixa / que ninguém mais o ouviu / como talvez não o ouviram / quando ainda vivia”.
- “Ninguém mais o ouviu / como talvez não o ouviram / quando ainda vivia” – repito.
Milana, formada em filologia, num lance genial, coloca em letras tudo o que se passa com o homem da chácara, com a Rose, com milhões de seres humanos.
Na consulta que fez na semana passada, disse: “É inacreditável que há poucas semanas quase me matei. Agora, até mesmo um jogo de truco me faz me deslocar até a cidade. Jogo truco e jogo conversa fora, muita conversa fora”.
- O trator me salvou – disse-me ele.
PERSONALIDADE NARCISISTA
Como saí tarde do consultório, não vou poder passar antes em casa. As luzes da praça Marechal Floriano já foram acesas. Gosto do aroma de café preparado na hora que vem do bar Oásis. Aos domingos, quando eu passo meu café, disfarço, aproximo as narinas da boca do pacote e inspiro com entusiasmo.
Caminho, mãos nos bolsos, rumo à pizzaria onde encontrarei as gurias.
E o fatídico bilhete deixado na sala de espera de meu consultório, quem o escreveu? O homem “salvo por um trator” convenceu-me não ser sua a autoria. Porém, foi alguém que, como ele, andou entrando na zona do silêncio. O suicida entra, sim, numa zona de silêncio, onde não é ouvido. Mas, verdade seja dita, ele não ouve também.
Há um momento em que se torna surdo. De nada adianta falar. Resta vigiá-lo, segurá-lo, contê-lo, porque ele quer passar a fronteira rumo a um país estranho. É como se tivesse sido englobado por uma bolha. Está numa outra “extratosfera”.
Dobro a esquina, procurando analogias que me facilitem comprender o porquê dessa perda de comunicação.
Enquanto continuamos englobados pela atmosfera terrestre, o suicida enclausura-se numa espécie de limbosfera. Lembram-se do limbo? Local onde impera a indecisão e o esquecimento. Morada das almas justas que viveram antes do advento do cristianismo, daquelas que, por não terem sido remidas do pecado original pelo batismo, nem Deus se comunica com elas. A bem da verdade, parece que até Ele não sabe o que fazer com elas.
O bilhete enigmático na sala de espera talvez tenha sido a última comunicação. De quem?
- Preciso descobrir logo – murmuro ao cruzar a porta da pizzaria.
A pedido de Mirla, o magro René, dos cabelos bem brancos, vem a nossa mesa contar de Aníbal. Esse general cartaginês teve a ousadia de invadir um império que podia dispor de setecentos mil soldados. Derrotou o maior exército até então organizado por Roma com uma estratégia bem simples. Avançou com o centro de sua infantaria por sobre o exército romano e deixou estáticos os soldados que estavam nas alas. Os romanos, mais numerosos, não só resistiram ao ataque como fizeram recuar os soldados de Aníbal. Foram ao encalço deles e acabaram entrando na armadilha. Quando se deram conta, já era tarde. Estavam como que dentro de uma caixa, com soldados de Aníbal à frente e pelos lados.
Nosso novo amigo se despede afirmando que seu forte é a história e não o comportamento humano. Como sabe o tema de nossa mesa? Mirla deve ter...
- Notícia boa! – Bebel fala alto para ser ouvida. – Danilo não só não é anti-social como dificilmente repetirá o distúrbio de comportamento que teve.
- Então... já transaram – conclui com malícia Mirla.
- Já sei, você está se apaixonando, pela primeira vez está se apaixonando e, como sempre acontece, passa a negar evidências negativas do amado – critica Larissa.
Bebel conta em detalhes as atitudes de Danilo reveladoras de que ele realmente tem empatia, que sua auto-estima é adequada e que suas emoções não são superficiais. Ele critica suas “delinqüentes façanhas”: não se vangloria, ao contrário, nem gosta de se lembrar delas. Inclusive, através de um amigo de confiança, fez chegar aos restaurantes o dinheiro que deixara de pagar nas jantas daqueles tempos.
Somos interrompidos por um rapaz de estatura mediana, cavanhaque preto bem aparado, vestido com roupas de grife que cumprimenta a todos com um abano geral, com exceção de Larissa, em quem dá dois beijos no rosto e passa a mão em seu queixo. Conversa com o gerente e deixa o bar cruzando pela nossa mesa e dizendo “tchau, linda” para Larissa.
- Ele é charmoso – admite Mirla. – Jorge, esse é o famoso Felipe.
Notando que ele evitou me encarar, questiono Larissa sobre se ela comentou alguma coisa a respeito de nossos debates. Ela me garante que não. Lembro-lhe que temos uma ética a ser preservada, caso contrário, viraremos meros fofoqueiros, tipo “o fulano disse que você é um... digamos... perverso polimorfo”.
Rimos.
- Nos conhecemos há tempos e sempre guardamos nossas análises para nós mesmas.
- Gostaria de avaliar melhor o Felipe, agora que me sinto um pouco mais desapegada dele – solicita Larissa. – Talvez ele tenha alguma coisa de personalidade anti-social.
- Que gelo você deu nele, hein? – constata Nicole. – Que gelo todas demos nele. No início, Jorge, nós o adulávamos muito e ele nos apresentava para conhecidos seus, sabe. Depois do pouco caso que ele fez com nossa amiga, fomos diminuindo nossos elogios a ponto de chegarmos ao que você viu hoje.
Larissa passa a nos contar de Felipe. Sempre se julga o melhor e gosta que os outros o reconheçam como o melhor. Isso vale para sua roupa, seu carro, sua família, sua capacidade no trabalho, sua namorada. No início, apresentava Larissa a seus conhecidos dizendo: “A gata mais bonita deste verão!” Um pouco brincando, um pouco falando sério, fazia-a repetir: “Felipe é o rei”. “Felipe é o rei na estrada”, quando dirigia. “Felipe é o rei na cama”. Quando bebe se torna arrogante e insolente. Encara os companheiros de festa e afirma: “A minha cinta, olha bem para ela, é italiana legítima ... O casaco... O perfume...” Desdenha as coisas dos outros. Julga que os outros têm inveja dele e inveja quem quer que pareça ter algo ou ser melhor que ele. Crê que todas as mulheres o desejam. Gosta de elogiar seus feitos e não tem a menor paciência para escutar Larissa. Dizia: “Vai falando enquanto eu aproveito para organizar alguns papéis”. Ficava mexendo em sua pasta enquanto Larissa falava e falava. De repente dizia: “Olha aqui! Olha aqui! Nunca te mostrei o e-mail que recebi da Fundação Airton Senna?”
- Ele passou a se irritar comigo desde o dia em que inventei de dizer que namorei um rapaz que dançava maravilhosamente bem. “Melhor que eu?” Respondi de pronto: “Perto dele você nem sabe o que significa a palavra dança”.
A partir de então, ele se mostrava magoado, indiferente e sem paciência com Larissa. Passados dois ou três dias, terminou o namoro simplesmente dizendo que estava gostando de outra. E realmente começou a andar com outra, e logo com outra e com outra. Porém, às vezes, voltava a dar alguma atenção a Larissa, parece que mais no sentido de mantê-la ao seu alcance para poder dizer a seus conhecidos que mais uma gata é apaixonadíssima por ele.
Expliquei às gurias que tais características fazem lembrar a personalidade narcisista. Citei os critérios que se usa para concluir por tal diagnóstico: sentimento grandioso da própria importância, exagerando suas realizações e seus talentos; fantasias de imenso sucesso, poder, inteligência, beleza ou de um relacionamento amoroso que seria o melhor do mundo; crença de ser especial e único e de que, portanto, deve associar-se a instituições ou pessoas de nível muito elevado; exigência de admiração excessiva; é explorador em seus relacionamentos, tirando vantagens de outros para alcançar seus objetivos de grandiosidade; espera receber sempre um tratamento especial; ausência de empatia; atitudes arrogantes e insolentes; sofre de inveja e crê que os outros o invejam. Resumindo: grandiosidade em fantasia ou comportamento, necessidade de admiração e falta de empatia.
Expliquei-lhes que, mesmo com algumas características iguais as da personalidade anti-social, como a falta de empatia, é diferente pela presença marcante da grandiosidade e por não necessariamente ser agressivo, mentiroso, nem apresentar distúrbios de conduta.
- Larissa, enquanto você agir no sentido de admirá-lo e enaltecê-lo, você serve. Do contrário...
- Noto que ele já anda com um pé atrás com todas nós. E depois de hoje... ninguém se levantou da cadeira e disse o quanto ele é o melhor e o maior.
- Para viver com um narcisista há que se assumir o papel de claque – conclui Mirla.
- Sim. Dá para se conviver na medida em que se entende que é por necessidade que ele age assim, por causa de uma auto-estima baixa. Precisa estar sempre se reafirmando.
- O narcisista é aquele que acha que, se não tivesse nascido, a humanidade estaria se perguntando por quê – troça Bebel.
Sugiro alguns textos sobre narcisismo e afirmo que elas devem conhecer mais sobre o assunto. Esse fenômeno está na base de muitos problemas de relacionamento.
DISTÚRBIO DA PREFERÊNCIA SEXUAL
- Chama-se zoofilia quando alguém tem preferência sexual por animais – explico.
- A Pati! É nítida a preferência dela pelo gato em detrimento a mim e ao marido.
Depois de algumas brincadeiras, nosso bate-papo se volta para a questão da preferência sexual e passo a revelar-lhes informações sobre as chamadas parafilias ou distúrbios na preferência sexual ou, ainda, denominadas perversões sexuais: exibicionismo, fetichismo, frotteurismo, pedofilia, masoquismo sexual, sadismo sexual, fetichismo transvéstico, voyeurismo e outros, como zoofilia e escatologia telefônica.
- Será que sou fetichista? – diverte-se Anderson. – Paro na vitrine para ver calcinha de mulher...
- E-mail para o Diego: “Anderson não agüenta mais se conter e confessa: é fetichista”. Outro e-mail...
Interrompo Jackson para explicar: há o uso não patológico de fantasias, comportamentos e de objetos como estímulo para a excitação sexual. São pessoas sem nenhum distúrbio na preferência sexual. A qual homem não atrai a visão da roupa íntima feminina? O voyeurismo, por exemplo: quem abre mão de espiar, caso lhe surja a oportunidade, uma mulher se despindo? Por isso já se disse que todos somos um pouco perversos polimorfos. Ou seja, sentimos alguma excitação com fantasias voyeuristas, fetichistas, sádicas, masoquistas, etc.
É patologia quando as fantasias são as nitidamente preferenciais. Voltando ao exemplo do voyeurismo: em sua forma severa, o ato de espiar constitui a forma exclusiva de atividade sexual. Explico que essas pessoas dificilmente procuram tratamento. Procuram concretizar suas fantasias com prostitutas, por exemplo. Alguns encontram parceiros que aceitam ou até que os complementam: um sádico e uma masoquista. Outros escolhem uma profissão, ou um passatempo, ou trabalho voluntário que os coloque em contato com o estímulo desejado. Um fetichista pode montar uma loja de roupas íntimas ou de sapatos femininos.
- Há cura, professor? – pergunta Anderson.
- Depende da gravidade do caso e do sofrimento que o distúrbio acarreta no sujeito.
Através da pedofilia, que envolve atividade sexual com uma criança com treze anos ou menos, tento esclarecer Anderson. Para receber esse diagnóstico, o indivíduo deve ter dezesseis anos ou mais e ser, pelo menos, cinco anos mais velho que a criança. A pedofilia envolvendo vítimas femininas parece ser mais freqüente que aquela que envolve meninos. Alguns sentem atração exclusivamente por crianças: tipo exclusivo. Outros, também por adultos: tipo não exclusivo. Alguns vitimam crianças de fora de seu círculo de relações, outros incluem os próprios filhos.
- Acompanhei um caso de um sujeito que se casou com uma mulher porque ela possuía, de outro casamento, uma criança que o atraía.
- Professor, vamos mudar de assunto – suplica Jackson.
- Deixa só eu completar a resposta ao Anderson. O prognóstico de um tratamento vai depender de uma série de características. Se é de tipo não exclusivo, por exemplo. Outra questão importante é se esta prática traz ou não sofrimento ao indivíduo. Alguns dizem que o que os incomoda é apenas a dificuldade para praticar sua perversão sem ser presos. Outros sentem extrema culpa, vergonha e depressão pela necessidade de se envolverem em algo que eles próprios consideram imoral e desumano.
Antes de sair, comento que as perversões são distúrbios quase que exclusivos dos homens. Em mulheres, aparecem apenas alguns casos de masoquismo sexual e numa freqüência bem pequena.
CIÚME COM ÓDIO, CIÚME SEM ÓDIO
Mirla e três amigas entram num elevador onde já se encontra um homem. Todas usam biquíni, estão em Camboriú. O elevador pára num andar abaixo e um homem que o esperava arregala os olhos ao ver as gurias e diz que aguardará outro elevador. Mirla comenta não compreender, pois, apertando um pouco, há lugar. O homem que já está no elevador diz: “Nos assustamos com mulheres lindas de biquíni”. “Por quê?” pergunta Mirla. “Pelo desejo, é muito forte”.
Por alguma razão, a resposta atrai Mirla. Quando saem juntos pela primeira vez, ele pede que ela coloque a mão sobre seu coração: as batidas são rápidas e fortes. “É medo, explica ele, medo de meu desejo de me apaixonar por você”. “Por que se apaixonar dá medo?” “Perco o comando de minha vida e não sei onde vou parar,” responde ele.
Mirla se sente atraída por Tiagão, como sempre nome inventado, mas ainda consegue comandar suas decisões. Ela mesma comenta que, no caso, a indução fora feita pelo próprio rapaz. Seus comentários inteligentes foram a sua propaganda. Ao mesmo tempo, ele foi o informante da realidade: a paixão traz perigo, pois não sabemos onde vamos parar.
No Cabral, em Itapema, enquanto saboreia linguado gratinado apreciando o acender das luzes naquela imensa baía, Mirla fica sabendo que Tiagão é engenheiro, separado, tem um filho de cinco anos e um ótimo senso de humor. Uma gargalhada a faz voltar o rosto em direção aos barcos ancorados. A gargalhada acaba em grunhido ao ver na areia, como que vindo dos barcos, Robson.
- Que azar! – lastimam em coro as outras gurias.
- Fiz de conta que nada estava acontecendo e não olhei mais para os lados. A negação da realidade, Jorge, é um bom mecanismo. O problema é que a realidade não sabe disso. Nervosa, tomei muita cerveja e tive de ir ao banheiro.
Na saída do banheiro, é segura por Robson que a encara com as feições de quem vai explodir em mágoa e choro e nada lhe diz. Desvencilha-se dele e retorna apressada à mesa. Tiagão percebe seu nervosismo e supõe que seja por causa do final da janta e do habitual convite à prática de sexo feito pelos homens. Procura tranqüilizá-la dizendo que, a par de seu desejo sexual, sabe que as relações se constroem aos poucos. Ao embarcar no carro, o pior: o carro de Tiagão está riscado de fora a fora. Mirla tem de abrir o jogo.
Após alguns “chi!” e outras interjeições de espanto, as gurias me questionam sobre o que eu faria no lugar de Tiagão.
- Quando tinha vinte e poucos anos vivi situação semelhante e saltei fora. Porém, Tiagão já tem trinta, deve se sentir mais confiante para lidar com os problemas da vida. E Mirla vale muitos sacrifícios – digo sorrindo.
- Olha a cantada – intervém Larissa.
Aproveito para explicar que há ciúme sem ódio e ciúme com ódio. Por exemplo, Werther tem imenso ciúme de Alberto, mas não tem ódio a Alberto. Com Robson, ao contrário, há que se tomar cuidado.
Tiagão, para surpresa de Mirla, encara o problema com muita naturalidade, considera-o simples e se dispõe a ajudar.
- Sabe como está a situação neste momento? Eu fujo do Robson e seus telefonemas e Robson foge de Tiagão e seus telefonemas. Tiagão quer porque quer conversar pessoalmente com Robson.
O INÍCIO DO FIM DE UMA PAIXÃO
O pai passou a se sentir angustiado. “Estou inquieto no bastidor”, dizia numa expressão de bom turfista. O filho resolveu distraí-lo, levando-o à praia. De volta, início de noite, o pai foi para os fundos da casa e se matou com um tiro.
O filho, perplexo, esteve no meu consultório há um mês e me deixou também perplexo. Tratava-se, provavelmente, do início do primeiro episódio de depressão no pai. Há história de antepassados depressivos, nada mais. Nem mais um sinal. Nem duas semanas “inquieto no bastidor” e se deu um tiro.
Há uma semana o filho me procurou pela segunda vez: não consegue levar os negócios adiante, acha que a cocaína que vem usando afetou sua capacidade de pensar. Quer largar a droga sozinho. Que nenhum familiar saiba de sua até então escondida dependência.
Há pouco telefonei para ele. Expus-lhe minha intenção de respeitar sua decisão de se tratar sem o conhecimento da família. Porém, o bilhete da sala de espera é preocupante. E afinal, seu pai, mais do que ninguém nos mostrou o fator-surpresa. Respondeu agradecendo muito meu interesse, mas o bilhete não era obra dele. Quer muito viver. Inclusive, num gesto de camaradagem para comigo, colocou-me em contato telefônico com sua mãe para me tranqüilizar.
Portanto, encontro-me bem ao sentar com os guris e pedir minha água mineral com limão e gelo.
Anderson conta que sente atração e, inclusive, admiração por Júlia. Ela tem garra: estuda com afinco, quer ser um dia uma profissional bem-sucedida, investe na sua beleza, o que significa que ela quer se apresentar bem. Porém, com o seu lado histriônico é difícil de conviver.
- Júlia vive como uma equilibrista em corda bamba. Se o público a aplaude, ela está maravilhosa.
- Expressa todas as qualidades humanas que possui – acrescento.
- Isso mesmo. Porém, se o público volta o olhar para um palhaço que entrou no picadeiro...
- O palhaço é você! – fustiga Jackson.
- ...Júlia despenca. Revela seus defeitos, fica indignada, raivosa. Ontem, então, foi demais: ficou uma fera comigo porque num shooping cruzamos por algumas amigas suas e eu não a estava segurando pela mão. Isto é, cometi uma tragédia! Mereci ser punido por sua ira todo o restante do dia. Como uma pessoa inteligente pode fazer uma leitura trágica de um acontecimento tão banal?!
- Há nela uma voz interior que lê a vida assim. Se ela escutar a tua voz, der mais importância a tua voz... Platão já dizia que a leitura da realidade deve vir da realidade e não de nosso interior. Fatos são fatos. “Pare e me escute. Eu não estava de mão contigo. Apenas isso”.
- Será que um dia ela vai me escutar?
- Júlia gosta de brigar, professor – afirma Jackson. – Só a vi em duas festinhas com o Anderson. Nas duas ela saiu emburrada.
- Importante: nós temos um prazer na guerra. Alguém duvida de que a humanidade gosta de brigar? Alguns exemplares gostam mais que os outros, é claro.
- Demonstre a Júlia que você não tem prazer em brigar, Anderson – sugere Jackson. - E você não tem mesmo, nunca foi de briga, foi sempre de apartar briga. E diga a ela: “Responda para si mesma se você tem prazer em brigar”.
- Sei que não te ajudamos muito. A mesa de bar tem suas limitações – desculpo a mim e a Jackson.
- Estou desanimando.
Anderson reconhece que, se terminar o namoro, haverá momentos em que sentirá arrependimento.
- Júlia é muito bonita.
- Um peixão! – louva-a Jackson.
- Tem uma pele suave. Júlia será sempre muito bonita e nisso seu histrionismo ajuda. Vai querer chamar a atenção sobre sua beleza quando tiver trinta ou cinqüenta anos. Júlia vai saber ganhar dinheiro, não será uma mulher dependente. Digo a ela que não gosto de brigas e que não vou brigar. Júlia se acalma quando ajo assim. Mas logo repete tudo de novo.
- Você não pode ter com ela uma comunicação ampla, é obrigado a medir as palavras – observo.
- Por exemplo, aqui com vocês eu posso falar de quase tudo. Com Júlia, de quase nada.
- É certo que nós não conseguimos uma comunicação total com outro ser humano. E que, especialmente entre homens e mulheres, é bom que se seja franco, mas não transparente. Mas em algumas relações a comunicação é exageradamente limitada.
- Com a Júlia eu seria visto como um homem bem casado: mulher belíssima e bem cuidada, inteligente, profissional... Porém, estaria só.
- A solidão de um homem bem casado... – murmuro – Há muitos anos alguém publicou um livro com o título A solidão da mulher bem casada.
- Portanto, estou num dilema: se fico com a Júlia vou perder; se a deixo, vou perder.
- Desejamos ter com a vida relação de mão única tipo “coroa eu ganho, cara você perde”.
Complemento minha frase explicando que muitos seres humanos ficam fixados num determinado nível de maturidade. Que podemos cruzar transtornos de personalidade com nível de maturidade.
Numa personalidade com traços histriônicos predomina o processo primário no pensar. É como se fosse uma criança coberta pela máscara de adulto. Ela espera dos outros atenção permanente e reage com petulância quando seus desejos não são imediatamente atendidos. Também há dificuldade em perceber a realidade. Todos os transtornos e até mesmo os traços de personalidade dificultam a percepção da realidade.
- A propósito, fiquei devendo, por ocasião da avaliação do nível de maturidade, o critério teste da realidade. Júlia, por exemplo, não percebe que seu desconforto vem de seu interior infantilmente exigente, e não das atitudes normais de seu namorado.
Em 1911 Freud escreveu sobre o teste da realidade: a capacidade de distinguirmos quais estímulos e percepções surgem de dentro de nós e quais vêm de fora. Os limites do eu. As frustrações que se repetem na infância de diversas maneiras ajudam a criança a distinguir o que é do “eu” e o que é de fora do “eu”. Durante as primeiras semanas de vida, o bebê é totalmente incapaz de distinguir se o que ele sente vem dele ou do meio. A frustração, por exemplo, de não ter o alimento na hora em que quer leva-o a perceber que o leite vem de fora.
Nas relações, o sexo, o afeto, o carinho são como o leite, no sentido de que vêm de fora. Não me pertencem e eu tenho de tolerar essa frustração, me resignar, aprender a conviver com isso. A realidade existe, ou seja, o outro existe e convém respeitar o outro e sua livre vontade em me dar ou não algo.
Durante a vida adulta normal, muitas vezes não percebemos bem a realidade pela imposição de nossos desejos e esperanças.
Quem tem um nível de maturidade infantil espera dos outros atenção e tolerância infinitos e reage com petulância quando seus desejos não são imediatamente atendidos. Tem grau limitado de responsabilidade e a expectativa de que, se se fizer necessário, alguém assumirá por ele e desculpará suas falhas. Exige muito de quem se vincula. Exige uma atenção, uma sinceridade, uma exclusividade, uma confiança total.
Alguns permanecem fixados num nível infantil; outros, num nível adolescente. O nível de maturidade não está sempre desenvolvido de forma homogênea. O indivíduo pode funcionar em diferentes níveis de maturidade, o que se nota nas suas relações. Alguns são maduros nas relações com os do mesmo gênero, porém imaturos nas com o outro. Mostram a imaturidade em atividades de grupo, ou com figuras de autoridade, por exemplo.
A VIDA É PRA VALER
- Percebi que o marido da Pati não iria me agredir: espichava os braços, erguia as mãos, esticava os dedos, o rosto vermelho, dizia algumas palavras soltas que eu não compreendia. Tentou sempre manter-se educado. Inclusive, abriu a porta para mim e disse: “Passe bem... primo!”.
Jackson, com a barba por fazer e olhar cansado, conta que, felizmente, estava apenas conversando com Pati que colocava louças na máquina para lavar. Eles se assustaram com os passos do marido no corredor que dá para a cozinha. Pati chegou a gritar, depois alegou que imaginara se tratar de um assaltante armado. Apresentou Jackson como um primo terceiro que morava em Manaus.
No outro dia, Pati telefonou a Jackson e lhe revelou ter contado ao marido a verdade e ter aceito começar tratamento psicoterápico, mais para tranqüilizá-lo.
- Pati me disse por telefone que correram lágrimas no rosto do marido. Que ele contou o ocorrido apenas para a irmã mais velha de Pati, que é muito amiga deles e pessoa ponderada. Pati é gostosa, mas é uma cabeça-de-vento.
- Pati é muito infantil. Não tem cabeça nem para transar direito. Pelo menos foi isso que você nos contou, Jackson. É uma criança. Como pôde casar!? Se eu fosse o marido dela, a jogava pela janela!- exaspera-se Anderson.
Ficamos em silêncio, os três.
- Estou me identificando com o marido... – retoma Anderson – Provavelmente pela dificuldade que passo com o histrionismo de Júlia. Sempre chamando a atenção dos homens... Não é mole.
- Também tomei as dores do marido – emenda Jackson. – Saí do apartamento dele muito chateado comigo. Parece que a realidade da vida caiu sobre minha cabeça. Vi o quanto aquele sujeito se conteve de indignação... o quanto sofreu. Sofreu por uma atitude minha, que, diga-se de passagem, nada significa para mim. Transar com a Pati, não transar com a Pati, conhecer a Pati ou nunca tê-la visto... para mim não muda nada. Sinto remorsos. O marido da Pati deve ter uns quinze anos a mais do que ela. É meio desleixado, poderia melhorar sua aparência, mas isso não justifica o descaso que ela tem pelos sentimentos dele. Descaso que eu também tive. Pelo menos eu não o conhecia. Agora que o conheci, me sinto mal. Curiosamente, ontem o vi novamente. Subimos juntos num mesmo elevador comercial junto com outros. Percebi que ele fez que não me viu: cabeça baixa, um homem vergado e triste. Não gostaria mais de vê-lo e, ao mesmo tempo, sinto uma curiosidade em observar como ele vai lidar com essa situação.
- Ao colocar Pati “a seu lado”, colocou o marido também – assinalo. - Você está querendo saber quem são esses a seu lado.
- Estranho ele se casar com aquela maluca.
- Você está grato a ele por não ter te ferido – supõe Anderson.
- Em nenhum momento tive este temor. Por que será?
- Por que será? – repito a questão. – Pati também não pareceu temê-lo.
- Será que foi por perceberem que o marido é tão maduro a ponto de não buscar a solução na violência? – pergunta Anderson. – E de que adiantaria surrar duas crianças?
- Eu mereço... – suspira Jackson - Sinto como se algo tivesse se deslocado dentro de mim. Assim como num navio um contêiner fora de local se desloca num mar revolto e se encaixa no lugar certo. A vida não é só brincadeira. A vida é pra valer.
Depois de um tempo calado, murmura:
- Vou me barbear melhor...
O ESTADO PSICÓTICO
Início de noite. A praça está iluminada, não é muito frio. Do banco onde estou sentado se vêem, por entre o verde, a cuia e a bomba, monumento símbolo de minha cidade. O vapor de água que sobe lento do interior da cuia imita bem o evaporar de água quente. E o mate que tomamos aqui é, em geral, exageradamente quente. Tenho tempo para o encontro e preciso ficar só para pensar numa família que se mata de surpresa.
Os três filhos da paciente a trouxeram ao consultório, estiveram na sala de espera. Na consulta de hoje, veio só porque está bem melhor da depressão. Avaliei com ela qual dos seus três filhos poderia ser o autor do bilhete deixado na sala de espera. Aparentemente nenhum, mas a história genética de sua família para a doença depressiva é de arrepiar.
Uma de suas irmãs, ao completar dezenove anos, tomou soda cáustica que usavam para fazer sabão. Motivo desencadeante: o namorado não aparecera. Motivo constitucional: doença depressiva. A irmã sofreu quarenta dias no hospital e morreu.
Um irmão, cuja esposa ameaçava deixá-lo, subiu no trator e jogou-o contra um cepo na frente dos filhos. A filha, na época com seis anos, afirmava: “Eu vi, o pai fez de propósito”.
O irmão mais novo da paciente, aos vinte e cinco anos, enforcou-se no galpão às dez da manhã de uma quarta-feira. Mais um que pegou todos de surpresa. Nem conseguiram perceber qual era o motivo aparente.
O pai da paciente sempre fora valente, forte, brigão, já atirara num desafeto. Porém, desde que vira o filho enforcado, virara uma criança assustada. Há bem pouco, chorou durante uma noite inteira com a fotografia de um neto sobre o peito e, na manhã seguinte, enforcou-se no mesmo galpão em que encontrara o filho dependurado.
Para finalizar, outro irmão morara dois meses num saco de estopa. Levavam água e comida para ele, tentavam removê-lo sem êxito. Um dia, por sua própria conta, saiu do saco.
Consulto o relógio: está na hora. Dou mais uma espiada na cuia antes de deixar a praça. Devo ficar em contato com esta mulher, afinal ela é mãe de três que estiveram na sala de espera, de três suspeitos.
Nicole traz ao encontro uma prima que está de passagem por sua cidade e quis vir contar sua história. Uma mulher alta, com alguns quilos a mais e atitudes que revelam inquietação: tamborila os dedos na mesa, levanta-se para examinar um quadro na parede, para pegar guardanapo em outra mesa, vai ao balcão e volta com o cardápio.
Conta que, há dez anos, apresentou um episódio de depressão bipolar. Na época, passou a ter uma energia descomunal a ponto de não precisar dormir. Andava eufórica, achando tudo fácil. Pensava estar agradando com suas piadas pornográficas, com o jeito desbocado no falar. Ao mesmo tempo, começou a se irritar com seu marido, a chamá-lo de bunda-mole por não ter a coragem de fazer as coisas que ela propunha: ir a cabarés assistir a streap-tease, contratar uma prostituta para transarem a três.
- Uma determinada noite, levantei pela madrugada e, sem mais nem menos, fui até a um cabaré, sozinha. Nem lembro direito o que fiz lá. É tudo muito vago na minha cabeça. Só lembro que, numa outra madrugada, sem mais nem menos, comecei a queimar minhas roupas na churrasqueira. Sem mais nem menos... sem mais nem menos...
A prima de Nicole acabou internada contra a sua vontade num hospital psiquiátrico.
- Algumas cenas vêm a minha memória, não sei se as vivi realmente ou se foram sonhos. Lembro de, ao assistir a uma palestra, começar a abanar e a piscar o olho para o palestrante. Ao final, subi ao palco e o beijei na boca. Fiquei sabendo que andei sem roupa pelos corredores da piscina de um clube. Sem mais nem menos... Enfim, enlouqueci.
A prima de Nicole conta que seu casamento terminou por ocasião desse surto. O marido, de tão envergonhado, chegou a mudar de cidade. Ela, desde então, está em tratamento e vem se mantendo dentro dos padrões normais.
- A minha queixa, doutor, por isso vim até aqui, é: por que não se tolera a doença mental? Seu eu tivesse tido hepatite, meu marido não teria me deixado.
- Depende do tipo de doença mental. Por exemplo, se você tivesse tido uma depressão unipolar, talvez ele tolerasse.
- Doutor, os homens se prendem às aparências e não às causas. É diferente uma mulher ser puta e outra agir como puta sem sua vontade, por um mero desequilíbrio na bioquímica de seu cérebro. A conduta é a mesma, mas a motivação é distinta – defende-se a prima de Nicole.
- Concordo.
Larissa conta de um colega seu de trabalho cuja mulher teve um quadro semelhante e ele tolerou.
- Mais de uma vez sua mulher saiu de casa eufórica e se foi com outro cara. Na última vez, ela foi encontrada noutra cidade num hotel com um homem que conhecera no dia anterior num ponto de táxi.
- É um santo este teu colega – elogia Bebel.
- Inclusive, ele diz ter pena dela e se espanta do quanto as pessoas são insensíveis. Que estes homens com os quais ela já fugiu são seres desumanos, que se aproveitam de sua doença. Que ele pretende protegê-la...
- Gostaria de conhecer este anjo – intromete-se a prima de Nicole, levantando-se da mesa e caminhando em direção ao banheiro.
- Isso de se aproveitar, nós todas sabemos de casos. Quantas vezes já falamos no nosso conhecido aquele – lembra Bebel – que sempre que uma mulher está em crise no casamento ele a procura.
- É falta de ética ou imaturidade, Jorge? – pergunta Larissa.
- Uma ou outra, ou as duas juntas – respondo -. Certa vez, um conhecido meu participou como palestrante num congresso de ginecologia abordando o tema da paixão no consultório.
- Opa!!! – exclamam as meninas.
- Pois o que mais o espantou foi um outro palestrante, famoso no centro do país, declarar que o ginecologista que diz nunca ter se envolvido com uma paciente é mentiroso.
- Nossa!!!
- Claro que não é verdadeira essa sua colocação. A grande maioria dos ginecologistas tem maturidade e ética suficientes para respeitar suas pacientes. O que espanta é ele tentar defender em público isso como fato normal e corriqueiro.
Numa prateleira fixada na parede diviso uma garrafa de Volpi, do branco.
- Jorge, bem que você poderia nos explicar que sinais nos farão perceber que uma pessoa enlouqueceu – sacode meu ombro Mirla.
Explico que, de forma bem simplificada, uma pessoa está psicótica, “louca” no chamar leigo, quando confunde seus pensamentos, imaginações ou fantasias com a realidade. Nós normalmente sabemos que, por exemplo, um sonho à noite é um sonho. Ou um sonho acordado, quando, por exemplo, sonhamos ganhar numa loteria. Não passa de um sonho. Há uma fronteira. Quando perdemos essa fronteira, estamos psicóticos. No caso, se fantasiamos que falamos com uma gaivota, isso é igual a falarmos com uma gaivota. Acho que foi meu vizinho que jogou lixo no meu terreno. Acho não. Meu vizinho jogou lixo no meu terreno. Ele é perigoso, é o demônio. E a pessoa passa a se conduzir não de acordo com a realidade, mas, sim, com a interpretação mágica que faz dela. Por exemplo, alguém entra cantando em voz alta aqui no bar e, ao ver que há gente, se cala. Pede desculpas. O psicótico continuará a cantar independentemente...
- A psicose é um estado transitório? – indaga Nicole.
- Na maior parte dos casos, sim. As pessoas da faixa etária com quem vocês mais convivem, adultos-jovens, podem apresentar psicose principalmente devido a uso de drogas, esquizofrenia e depressão psicótica.
- Jorge, muito carinha que a gente acaba conhecendo e com quem se sai usa drogas – revela Mirla – Se você me indicar um texto eu apresento num outro encontro os sinais indicativos das principais drogas. É importante para nós todas...
Sigo bebendo água mineral, limão e gelo. O Volpi continua lá na prateleira. Eu tenho força de vontade. Tenho, sim. Consigo tolerar a frustração de um desejo mesmo que precise pedir ao garçom mais gelo e mais limão, bastante limão no meu copo. Ah! E a água mineral agora a quero com gás! “Cuidado com o gás!” Sorrio interiormente ao lembrar da brincadeira que um dos meus filhos fez comigo um dia desses ao me ver tomando tanta água mineral com gás.
- E a psicose na depressão? – Larissa quer saber.
Explico que existem vários tipos de depressão. A depressão poderá ser reativa, ou seja, os sintomas surgem após uma perda ou uma desilusão.
Por outro lado, existe uma doença depressiva originária de alterações na química das sinapses neuronais. Pode ser unipolar quando só apresenta o pólo depressivo, ou bipolar, quando apresenta episódios de euforia e aceleração.
Estima-se que esta depressão causada pela alteração da bioquímica do cérebro atinja quatro por cento da população, ou seja, numa população de cem mil habitantes, quatro mil...
- Tanto assim!!!
- Felizmente só uma pequena parte dos depressivos entra em psicose.
Como todas elas têm familiares ou conhecem pessoas que sofrem de depressão, julgo por bem recomeçar a explicação sobre a doença.
- Todos somos acometidos de tristezas passageiras por um ou outro dissabor que a vida gera. Às vezes, a tristeza dura um pouco mais por sua causa ser importante: uma perda ou uma desilusão afetiva. Sempre que nos lembramos do ocorrido nos entristecemos. Em geral, o "tempo é o melhor remédio". Mas há situações em que o melhor é buscar um tratamento psicoterápico com psicólogo ou psiquiatra.
Entre um gole e outro da mineral com gás vou despejando informações. Explico que a depressão pode não ser uma tristeza passageira relacionada a determinado acontecimento. “Cuidado com o gás”, escondo meu riso. Pode ser uma doença orgânica, em virtude da alteração na bioquímica de nosso cérebro.
As células de nosso cérebro transmitem informações umas às outras através de substâncias chamadas de neurotransmissores. Quando há uma deficiência nos neurotransmissores, a doença aparece. Não importa se a vida está andando bem ou não.
Na depressão a pessoa pode apresentar alguns do seguintes sintomas: profunda tristeza sem motivo, desânimo, falta de vontade, perda de interesse por coisas que até então lhe interessavam, angústia, dificuldades na memória, pensamento/raciocínio mais lento, a pessoa se sente menos inteligente do que sempre foi, falta ou excesso de apetite, dificuldade para dormir ou excesso de sono, desesperança e pessimismo, culpa, baixa auto-estima, diminuição da libido (do interesse sexual), idéias ou tentativas de suicídio, sintomas físicos os mais variados.
A depressão pode ser grave, moderada ou leve. Alguns indivíduos são acompanhados por uma depressão leve quase que a vida inteira (distimia). Outros intercalam períodos de depressão com períodos de euforia e de aceleração mental (bipolar). O nome científico que consta na Classificação Internacional das Doenças para as diferentes depressões é transtornos afetivos.
O tratamento é feito principalmente com medicamentos que corrijam a alteração na bioquímica do cérebro. São os chamados antidepressivos. Estes remédios levam, em geral, de duas a quatro semanas para começar a apresentar resultado. Alguns deles podem ter efeitos colaterais passageiros, como secura na boca e constipação intestinal, entre outros. Mas, por terem sido muito testados e muito utilizados, são seguros. Os primeiros antidepressivos surgiram na década de cinqüenta. Muitas vezes um acompanhamento psicoterápico também beneficia o paciente.
- Jorge, a Nicole poderia nos falar sobre esquizofrenia – propõe Bebel.
Percebo embaraço em Nicole.
- Desculpe, Nicole. Por favor, me desculpe.
Saio do bar sem compreender qual é a relação embaraçosa de Nicole com a esquizofrenia. Claro que ela não tem essa doença. Alguém de suas relações?
O FIM DE UMA PAIXÃO
É noite quente. Procuro mesa próxima à janela aberta. Gosto de chegar antes: posso divagar, esfregar os olhos e, hoje, olhar pela janela. Vejo o pequeno pátio mal-iluminado de uma casa bem velha.
Pelas paredes sobe algo que, caso iluminado, poderia confirmar se se trata de uma trepadeira antiga. Há uma janela de vidro que mais parece um tabuleiro de xadrez de uma cor só, escura, bem escura.
Não gosto de visitar casas velhas, menos ainda de morar nelas, mas gosto muito de olhá-las de fora. Observar suas paredes, suas portas, suas janelas e imaginar sua história. Quantas vidas nasceram, viveram e morreram dentro dessa construção decaída ao alcance de meus olhos? Fico um pouco perplexo ao me dar conta de que muitos seres humanos habitaram este pequeno pátio e já não existem mais. Mas o pátio e a trepadeira e a janela escura continuam ali.
A casa onde eu moro, quantos já a habitaram... Um dia eu irei também e minha casa vai continuar no mesmo lugar. Quantas vidas vão passar pela minha casa?
Vejo Jackson e Anderson entrando na choparia.
Nunca senti que minha casa fosse minha. Não é minha. O que está na escritura não reflete a verdade da vida. A casa foi de meus pais, será de quem após eu morrer? E quando este que a escriturar no seu nome morrer, a casa será de quem mais? Não, as casas, quando velhas, se pudessem nem perguntariam: “Afinal a quem pertenço? Ao primeiro ou ao vigésimo que me habitou?” Não perguntariam porque saberiam que não pertencem a ninguém.
Anderson conta que não só foi deixado como acaba de ver Júlia com outro. No último sábado, reclamara de sua demora no cabeleireiro e, como resposta, ouvira que o namoro estava encerrado. Que a paciência dela se esgotara. Um homem que não sabe esperar é um homem egoísta que só pensa em si. Que ela se orgulhava do tamanho da paciência que tivera nesse tempo todo de namoro.
- Paciência?! Ela?! Eu é que poderia reclamar de tudo que aturei!
Júlia acusou-o de muito imaturo, de insensível, de burro por não perceber a mulher simples, dedicada e humilde que estava perdendo.
- Ela inverteu tudo. O sangue me subiu à cabeça. Tive vontade de rasgar suas roupas de cima abaixo, mas me dominei. Virei as costas e saí sem dizer nada.
- Você nos disse que queria terminar – relembra Jackson. – Pronto, terminou.
- Sim, mas...
- Você não queria ser aquele que é deixado – presumo.
- Sim. É humano, não é?
- É humano. E tem outra coisa. É difícil se afastar de alguém com tanta coisa trancada na garganta. Bem sei que você gostaria de ter dito muita coisa para a Júlia.
- Aprendi contigo de que nada adiantaria. Tudo que nela me desagrada... é ego-sintônico. Por isso, virei as costas e fui embora sem dizer nada.
- Sabe o que ela deve andar pensando? – imagina Jackson. – “Como é imaturo o Anderson, veja sua atitude! Virar as costas e ir embora sem sequer se despedir...”
- Passados dois dias, telefonei com a intenção de terminar de uma forma madura. Nem me deixou falar: “Anderson, como você é imaturo. Já quer voltar. Cresça, Anderson! Cresça”. Quase explodi.
- Quem desligou o telefone? – pergunta Jackson.
- Ela. Que fique achando que me deu o fora!
- A melhor maneira de terminar é colocando na boca do outro a iniciativa do fim – assevero. – Para que termos pessoas ressentidas conosco? Mas precisamos ter, para tanto, um boa auto-estima.
- Estive bem até há pouco. Acabo de ver Júlia de mãos dadas com outro e... minha auto-estima escorreu para baixo, vazou por um furo em meu sapato e mergulhou na primeira boca de esgoto. Estou literalmente na merda.
- Ela te largou por já ter outro – argumenta Jackson.
- Concordo. Já não a elogiava e, mesmo assim, ela estava segura de si. Alguém lhe dizia coisas boas no ouvido. Não esperava me sentir assim ao vê-la com outro. Esperava me sentir aliviado.
- Num segundo momento a sensação de alívio vai vir. Agora não. Agora você está como na letra Nervos de aço, de Lupicíneo Rodrigues: “Eu não sei se o que trago no peito/É ciúme, despeito, amizade ou horror/Eu só sei é que quando a vejo/Me dá um desejo de morte ou de dor”.
- É por aí...
- Sabe de que ano é esta composição? 1947. Portanto, o que é velho é... bom.
- Continuo querendo o fim desse namoro... no entanto...
- É a aparência de Júlia, confessa... – exige Jackson.
- Reconheço. Ela é um saco. Mas é uma gata.
- Que é, é! Sou teu amigo, mas vou continuar dizendo que você acaba de perder, não é fácil encontrar tamanha beleza numa mulher – argumenta Jackson.
- Mas é chata! É terrivelmente chata! – contra-argumenta Anderson.
- Chata, mas gata! Ah! Ia esquecendo! O Diego quer mais dinheiro. Vai ao México com a tal de Rosária. Emprestamos?
- Por uma paixão se vai ao México? – lanço a pergunta no ar.
Anderson é quem responde:
- Se vai, desde que se volte. Pago para ver.
ALGUÉM FORA DO COMUM
Enquanto aguardo as gurias, leio algumas correspondências trazidas no bolso do casaco. Afrouxo a gravata. Sou inconstante no vestir, às vezes terno e gravata, às vezes uma simples camisa. Tiagão gravou, às escondidas, um diálogo que manteve com Robson e ela acaba de transcrevê-lo. Distribui cópias para mim e para as outras gurias que se acomodam à mesa.
Jamais gravaria nem transcreveria o texto. Confesso não ter certeza se por princípios éticos ou se pelo medo infantil de ser punido por estar fazendo algo às escondidas de alguém.
“- Se vim ao teu escritório é porque estou com o espírito desarmado...”
Meu celular toca e sou obrigado a interromper a leitura. O marido da lojista, da Rose, tranqüiliza-me. Não foi Rose quem deixou aquele bilhete na sala de espera de meu consultório. “Tenho tanta certeza que posso levar adiante meus planos”, comenta ele antes de desligar.
Retomo a leitura:
“- Não sei por que você está se metendo nisso. Você não está namorando a Mirla... ou está?
- Estou.
- Porra! Você sabe que eu sou apaixonado por ela. E vem aqui na boa me dizer que está namorando ela... quer um tiro?
- Quero evitar tiros.
- Você parece muito seguro de si.
- Não só pareço como sou.
- Quer dar uma de galo. Você nunca ouviu a frase: “Com louco não se briga”? Pois é, eu sou louco.
- Eu tenho irmão que é psicólogo com quem converso muito...
- Diga logo, o que o teu irmão mandou tu me dizer.
- Nada, eu não vim dizer nada.
- Mas como? Você começa a namorar uma mulher que faz parte da minha vida, vem até aqui e nada tem a dizer?
- Simples. À medida que Mirla passa a fazer parte de minha vida, você também passa a fazer parte de minha vida. Entendeu?
- Acho que você é mais maluco do que eu.
- É o óbvio, cara. Você agora é parte da minha vida e, como tal, nós vamos nos encontrar muitas vezes.
- Cai fora, satanás!
- Eu passo a ser parte de tua vida!
- Isso se eu quisesse. Ouça bem: eu não quero você na minha vida.
- Cara, eu já estou na tua vida.
- Cai fora, satanás!
Barulhos na gravação.
- Epa! Pare com isto!”
As gurias e eu passamos a proferir exclamações do tipo: “Incrível!” “Não acredito!”
- Sabe como terminou o encontro Robson-Tiagão? – Mirla consegue rapidamente nossa atenção – Robson tentou, meio em dúvida, agredir Tiagão, que segurou os seus braços com toda a força e fez escorrer as mãos pelo antebraço, pelo pulso até conseguir apertar as mãos de Robson. E, enquanto de mãos dadas, Tiagão repetia: “Nós estamos iniciando um relação muito forte! Nós somos muito iguais! Inclusive temos o mesmo gosto por mulher! Somos almas gêmeas!”
- Já estou ficando com dó do Robson – penaliza-se Larissa.
- Que nada! O Tiagão é meu herói! – Bebel contradiz a amiga.
- Mirla, você arrumou um cara que tá “fora da casinha”, bem fora – ataca Nicole.
- Disso você entende... – contra-ataca Mirla. – Desculpe, Nicole. Sinceramente não quis te agredir. Saiu sem querer.
Robson ligou para Mirla se queixando. Tiagão diz que ele está apelando para a deprecação. O que é uma “deprecação“? É a súplica que se dirige a alguém apelando para todos os sentimentos que possam comovê-lo. Tiagão alertou-a para não se submeter a deprecação nenhuma. Explicou, inclusive, que outro nome para isso é “obsecração“.
Após um breve silêncio, constrangedor, o tom alegre é retomado. Mirla conta que Tiagão tem ligado todos os dias para Robson. Insiste que quer ser apresentado para seu irmão e para seus pais.
- Não é de acreditar...
NÍVEL DE MATURIDADE E ÉTICA
- Descobri o telefone do marido da Pati...
- Só faltava você querer conversar com ele! – surpreende-se Anderson.
- Já conversei. Aqui mesmo: neste bar e nesta mesa.
- Tu é louco, cara.
Jackson conta que o marido estava calado, taciturno e que não reagiu a seu pedido de desculpas. Disse que tinha recursos para mandar matá-lo. Depois de um tempo em silêncio pergunta-lhe: “O que você quer de mim?” “Eu agi mal – respondeu Jackson – mas gostaria de lhe explicar que não foi por iniciativa minha”. Contou-lhe como a conhecera na academia e que fora ela quem lhe telefonara. Que este episódio seria marcante em sua vida, pois percebera que sua atitude fora quase tão imatura quanto à de Pati. De repente, o marido lhe perguntou: “Você acha que ela vai fazer isso de novo?” Jackson responde que, sinceramente, acha que sim. Que ela não procura sexo, nem gosta de sexo, mas que, com a mentalidade de adolescente que tem, poderia querer se auto-afirmar seduzindo outros rapazes. “Ela não vivenciou sua adolescência, queimou essa etapa e agora está tentando... Que situação a minha! Conheço-a desde pequena, nossas famílias são amigas. Ela não quer se separar. Não sei se tenho cabeça para acompanhar o amadurecimento de uma adolescente. Ao mesmo tempo, tenho muita afeição por ela e sei que quem teria de pensar melhor antes de casar era eu. Ela tinha apenas dezessete anos. Resolvi esconder o que houve para não prejudicá-la junto à sua e à minha família”. Jackson disse-lhe que o admirava pela maneira realista como lidava com o problema. Que ele lhe dava uma lição de vida, um exemplo. “Um corno maduro”, murmurou o marido. Depois de um tempo calado, disse: “Há algo mais do que maturidade versus imaturidade nesta história toda. Há adolescentes e, como tal, imaturos, que agem seguindo uma ética que não acarreta sofrimento nos outros. Você nunca deve ter ouvido falar em ética”. Levantou-se e lhe disse antes de ir embora sem se despedir: “Quando você for corno, desejo que seja como este aqui que você acaba de dizer que admira: maduro”. Deu alguns passos, virou-se e disse em voz alta sem se importar com as outras mesas: “Que sejas um corno maduro!”
- Não creio que haja alguém preparado para enfrentar uma traição. Mas, sem dúvida, há maneiras e maneiras de lidar com ela. Este homem tenta lidar compreendendo realisticamente o que houve. Ou seja, não piora o problema. Tem boa auto-estima – assevero.
- Ele percebe que a Pati é uma adolescente – acrescenta Anderson.
- Que ela pulou uma etapa. Porém, existem adolescentes que não traem. Portanto, há que se pensar também em outros fatores – continuo.
- Éticos? – questiona Jackson.
- Sim, éticos também. Qual a ética desta menina?
- Ela não se colocou no lugar do marido – comenta Jackson.
- Sim, como é sua capacidade de empatia? Só pensa nela, em suas vontades, vaidades e temores? Não poderia imaginar o sofrimento do marido, pessoa importante em sua vida, afinal nem se separar quer. Jackson: quem é Pati?
- De agora em diante, vou me envolver de maneira mais pensada. Vou me perguntar: “Quem é esta a meu lado?” E também: “Afinal, quem sou eu?”
- Não acredito – retruca Anderson – Ninguém muda de uma hora para outra.
- Toda a mudança requer um processo por vezes longo. Com avanços e recuos. Jackson fala na decisão de iniciar o processo.
- Professor, não é comum a reação deste marido, estou certo?
- Em geral há mais violência, assassinatos inclusive. São revividos sentimentos muito primitivos.
- Professor, se este homem tivesse reagido de forma imatura, agredido a mim e a ela, só pensado em vingar sua desonra, essas coisas, eu não me colocaria no lugar dele. Não sentiria remorso. Sentiria raiva. Por que eu me sinto mais culpado com o traído maduro do que com o imaturo?
- Não sei responder. Talvez porque o imaturo fique voltado para seus interesses apenas e não consiga se colocar no lugar dos outros. Sofra por ver ferido seu narcisismo, essas coisas. Só pense em si. Já o maduro, consegue se colocar no lugar dos outros, da mulher, pelo menos. Mostra qualidades humanas, é gente, não bicho, nem fera. E a gente se identifica com quem é gente. Melhor que isto: nossas qualidades humanas vêm à tona quanto as vemos em alguém que sofre. Não sei mais que outras explicações... A ética. Sim, a ética. Jackson, para você perceber qual é a ética dos outros, precisa, primeiro, ler filosofia.
- Por que será que alguns chegam ao estágio da maturidade e outros param lá atrás? – divaga Anderson.
Explico que não temos todas as respostas. Freud já chamara a atenção para o fato de os seres humanos muitas vezes se manterem paralisados num determinado ponto de sua evolução: os nossos pontos de fixação. Tendemos a repetir e repetir aquela fase pela gratificação que ela nos dá, fenômeno denominado de compulsão à repetição. Mesmo não sendo um prazer de melhor qualidade como o é o prazer adulto, é o prazer que conhecemos. E se viermos a gostar em demasia dele, vamos tentar repeti-lo e não sentir a necessidade de experimentar um prazer novo. E quando a vida não anda nos proporcionando muitas satisfações, tendemos a regredir àquele ponto de fixação prazeroso e a ficar repetindo aquele tipo de situação mesmo que em fantasia.
- Portanto, guardem os termos: regressão, fixação e compulsão à repetição.
- Professor, e a ética? Me situe nela – solicita Anderson.
- Primeiro, vamos diferenciar ética de moral. A última é mais uma teoria, a primeira é mais uma prática. A ética consiste na discussão teórica sobre o que é o bem e, por extensão, sobre o que é o mal. Já a moral volta-se, na prática, para qual a ação é certa e qual é errada.
- Ética igual à teoria e igual ao bem e ao mal. Moral igual à prática e igual ao certo e ao errado – procura memorizar Anderson. – Portanto, no dia-a-dia estamos às voltas com a moral.
- Nós estamos constantemente avaliando e julgando a nossa conduta e a conduta dos outros de acordo com algum parâmetro. Temos duas maneiras de decidir o que é certo – retomo. – De forma simplificada, nossa moral será baseada no que já está “escrito” ou nas conseqüências de nossa opção. Se você concorda com os Dez Mandamentos, você já sabe como agir frente a determinada situação. Se você se baseou na lei de seu país, você ficará parado dentro de seu automóvel num sinal vermelho de madrugada em São Paulo. Está escrito que passar em um sinal vermelho é errado. Porém, se você se baseia nas conseqüências de sua opção, é possível que você não fique parado no sinal vermelho pelo risco de ser assaltado.
Digo a eles que o exemplo que vou citar foi retirado do livro Mais Platão menos Prozac, de Lou Marinoff: Robin Hood roubava e entregava aos pobres. Se você se nortear pelo que “está escrito”, Robin Hood está errado. Agora, se você é “conseqüencialista”, poderá achar que ele está certo.
- Às vezes opto pelo que está escrito e, às vezes, pelas conseqüências como no caso da sinaleira vermelha, por exemplo – descreve-se Anderson.
- Sim. Quem se baseia no que já está escrito é um deontologista. Do contrário, nas conseqüências, é um teleologista. E quem ora encontra o certo num ora no outro, a maioria de nós, é um relativista metaético.
Saio do bar com vontade de ler mais sobre filosofia. Foi Aristóteles quem disse que o caminho da felicidade é o caminho do meio?
APARÊNCIA VERSUS CONTEÚDO
A mãe dos três suspeitos esteve hoje no consultório e levou por escrito um roteiro de avaliação do risco de suicídio. Conversará em separado com cada filho sobre os suicídios em sua família e sobre o que já sabe a respeito. Fará perguntas em seqüência: já pensou em morrer, já pensou em se matar, já falou para alguém que tinha vontade de morrer, que tinha vontade de se matar, elaborou mentalmente algum plano de como cometer o suicídio, já fez alguma tentativa. Avaliará a intensidade da identificação com familiares, amigos ou ídolos que cometeram o suicídio. Também observará se possuem religiosidade excessiva e se freqüentam assiduamente cemitérios.
Algumas pessoas temem perguntar diretamente: “Você já pensou em se matar?” Dizem para mim: “Não estarei assim colocando essa idéia na cabeça dele?” O suicídio não é induzido por perguntas. Alguém que comete esse ato vive problemas graves. O perigo não reside numa simples pergunta, mas, sim, nos graves problemas que vão tomando conta dele e levando-o a um beco sem saída. Quando chega ao nadir de sua derrocada geral, surge a idéia de suicídio. Em oitenta ou noventa por cento dos casos, há um quadro de depressão por trás: a depressão doença, a depressão provocada pelo uso do álcool ou de outras drogas, como cocaína e crack, a depressão provocada por alguma profunda perda ou desilusão, a depressão em quem sofre de esquizofrenia...
- Enfim, o suicídio não surge do nada – balbucio ao entrar na pizzaria.
O brilho nos olhos azuis de Larissa, a expressão de vida em seu rosto, o seu sorriso bonito provocam em mim sentimentos melhores do que os que estava tendo e denunciam algo novo.
- Larissa, por que você está assim tão bonita e cativante? – indago interpretando a vontade do grupo. - Colar de corrente com cadeado? Brincos de argola?
- E a gargantilha, onde a comprou? - ajuda-me Bebel - Gargantilha de citrino e madrepérola. Olhem bem...
- Há cinco dias não paro de me sentir feliz. Emagreci meio quilo.
Como chamar o homem separado de mais de quarenta anos que se encontra com Larissa todos os dias há cinco dias?
- O dobro da tua idade! Mais que o dobro! Você que defendia o namoro com alguém da mesma geração! – polemiza Nicole.
Larissa concluíra estar enganada. E não importa que seu amado tenha barriga e seja calvo.
- Já sei, ele fala um espanhol... – rio.
Conto da tangueria Fun Fun, a qual visitei com a Rejane, minha mulher, em Montevidéu. Tangueria fundada em 1895. Mesmo já tendo sido transferida de imóvel algumas vezes, conserva ainda o mesmo balcão utilizado desde a fundação, há mais de cem anos. É um museu do tango uruguaio. Gardel se apresentava lá, Piazola e todos os do mundo do tango. Pois bem, como acontece com o tango, no meio de uma canção a música pára. Os músicos não concordam que o cantor recite uma letra em que ele, ao se defender de uma rejeição, afirme-se jovem e bonito. Em meio às discussões do cantor com os músicos e com a platéia sobre o tema, surge a indagação: como pode haver homem velho e feio ali naquelas mesas ladeado por bela mulher? “Resposta simples. É velho e feio – diz o cantor, um homem, por sinal velho e feio, mas muito elegante – porém fala um espanhol...”
- Jorge, você acertou em cheio – confirma Larissa.
E passa a nos contar do “espanhol” do quarentão e, inclusive, nos mostra a gravura que ganhou dele, de Camille Corot: A igreja de Marissel.
- Nas horas vagas, é pianista.
Antes de vir ao nosso encontro, ouvira-o no final da tarde ao piano: “Variações sinfônicas para piano e orquestra”, de César Franck.
- César Franck???
Ninguém ouvira falar em César Franck, um dos grandes compositores da segunda metade do século XIX. O pianista das horas vagas dissera à Larissa que, se quisesse conhecer sua personalidade, bastaria ler sobre César Franck, com quem se identificava muito e que fora o maior organista da França.
As discussões voltam-se para aspectos já vistos no grupo. A indução ao sonho: César Franck. A informação da realidade: a diferença de idade. Todas reconhecem que a mistura piano-Paris é poderosa indutora da paixão. Também não negam que a diferença de idade pode ser problema.
- E quando você for apresentá-lo a teu pai?! Que situação, Larissa! Ele tem a idade do teu pai e é mais velho que tua mãe! – escandaliza-se Nicole.
- Ele tem uma filha... mais nova que eu.
Percebendo nossas feições interrogativas, complementa:
- Dezoito anos. Do primeiro casamento. Ele tem outra, do segundo casamento.
- E do terceiro? – brinca Mirla.
- Com a terceira mulher ele não teve filhos... Acaba de se separar.
- Parem! – ordena Bebel. – Vamos deixar a fase da realidade para mais adiante. Agora só César Franck e Paris. Afinal, estamos todos felizes, não suportávamos mais a cara triste de nossa amiga. Um brinde ao renascimento de Larissa! Um brinde ao quarentão e ao seu “espanhol” bem falado!
PERSONALIDADE IMPULSIVA
- Doutor, você que estudou anatomia na faculdade, responda: onde começa e onde termina o corpo humano?
Vou chamar de Pirandello, logo vocês saberão o porquê, ao meu conhecido que se aproxima de nossa mesa. Magro, com barba por fazer, cabelo já esbranquiçado, raramente nos encontramos, mas há algo que nos une: a amizade que tivemos por Pedro Alexandre, ator de teatro amador de nossa cidade que certa vez representou As mãos de Eurídice. É bem verdade que minha amizade era menor: apenas conversávamos sobre cultura no bar do Turis, tomando um cafezinho, isso lá pelos anos sessenta ou setenta. Pirandello sofreu influência maior de Pedro Alexandre e virou ator de teatro. Andou por Porto Alegre, pelo Rio, não faz muito que voltou. Mudou de ramo, é comerciante numa cidade próxima.
- Se é corpo de mulher... – pensa em voz alta Jackson - começa pela bunda.
Rimos.
- É por onde começo a olhar, é o meu começo – clareia Jackson. – Se ela está de frente, o começo é nas coxas.
- Rapaz esperto... e se é corpo de homem? – problematiza Pirandello.
- Começa e termina na testa – sai pela tangente Jackson.
Pirandello acaba sentando-se conosco. Lembramos Pedro Alexandre, e ele conta alguma coisa do teatro. Em verdade, das suas próprias frustrações na carreira.
- Só consegui um único papel importante, de resto não passei de figurante em peças sem importância. E não se deve à falta de talento. A vida está repleta de gente, em tudo há muito mais pretendentes, bons pretendentes, do que vagas.
Pirandello conta-nos, com orgulho, da vez em que, platéia lotada, entrou inesperadamente num palco vazio, onde atores representavam ensaiar uma peça de um autor nebuloso chamado Pirandello.
- Representava um rapaz de vinte anos que se escondia atrás dos outros, fechado em si, como se os outros lhe despertassem apenas desprezo. Estou falando, é óbvio, de Sei personaggi in cerca d’autore. Quando, em 1921, esta peça fez sua estréia em Roma, todo o repertório então em vigor envelheceu bruscamente. E eu? Depois de minha apresentação triunfal nenhuma companhia mais me contratou. Envelheci para o teatro, acabei. Fiquei me enganando durante vários anos antes de voltar. Aliás, como Pirandello, considero a vida uma triste palhaçada. No nosso íntimo, sabemos que, sem saber por que e para que, criamos uma realidade enganosa que, depois, vamos ver que é inútil e ilusória. Nos enganamos, por exemplo, com a bunda de uma mulher.
Escolhemos no cardápio os comes-e-bebes e retomamos a escuta a Pirandello, que, a propósito, afirma que há anos nada bebe que contenha álcool.
- Assim como Pirandello, casei com uma mulher desequilibrada, bem mais nova que eu, belíssima. E eu quis me enganar com sua beleza...
Relata que se cansara de ir a boates, a shows de rock e das amigas fúteis da esposa nova. Estava também chateado com sua constante irritabilidade e com seus acessos de agressividade. Ele já havia notado que ela, por pouca coisa, gritava com os familiares, ofendia alguma amiga por telefone. Resolvera, então, se separar. Porém, a jovem não só não aceitou como teve uma reação violenta: esbofeteou-o no rosto. Pirandello conta ter saído de casa e ido para o apartamento de um amigo. Dias após, seu carro aparecera riscado de fora a fora. Mais ainda, um vizinho o avisou de que uma jovem o estaria esperando no corredor com ares inamistosos, talvez com uma arma. Ficara sabendo que o pai de sua esposa já havia matado. Conclusão: voltou para ela, dizendo-se arrependido.
- Volta ao casamento para concluí-lo melhor – arrisco.
Torna-se um marido chato: está sempre com uma dor aqui, outra ali. Seu trabalho passa a exigir mais tempo dele: não pode ir a boates, ir a shows... A esposa tem crises de irritação. Logo se diz enfadada do casamento e, em ato contínuo, termina a relação.
- Pirandello, você poderia dar um curso sobre como conseguir sangue-frio suficiente para bem terminar um namoro - devaneia Jackson.
Assim que Pirandello se despede de nós, Anderson pergunta:
- Professor, quem era essa ao lado do seu amigo Pirandello?
- Nunca a conheci. Mas é visível que o nível de maturidade de ambos era bem distinto. Às vezes pessoas com grande diferença de idade apresentam maturidade semelhante e a relação flui com mais facilidade. Também a ética. Parece que em sua família, pelo histórico de seu pai e pela atitude que ela tomou ao ser deixada, a agressão física era aceita. A ética dessa família inclui a agressão para lidar com os problemas da vida. São suposições, porque nada sei dessa família. Além disso, há indícios de que ela apresenta algum distúrbio. Poderia ser um quadro depressivo: a irritação, em geral, esconde uma depressão. O mais provável é que apresente transtorno de personalidade impulsiva.
Distraio-me. Em minha mente surge a memória de um congresso de psiquiatria em que nos reunimos, os que mais lidávamos com o suicídio, para identificar o fator que decide. Ganhou a impulsividade.
Explico que, na Classificação Internacional das Doenças, consta o transtorno de personalidade emocionalmente instável, no qual se enquadram as pessoas que apresentam uma tendência marcante a agir impulsivamente, sem considerar as conseqüências, juntamente com a instabilidade afetiva. Este transtorno apresenta dois tipos: impulsivo e borderline ou limítrofe. Pirandello descreveu uma pessoa que, provavelmente, seja do tipo impulsivo, cujas características predominantes são instabilidade emocional e falta de controle de impulsos. Acessos de violência ou comportamento ameaçador também aparecem, particularmente em resposta a críticas de outros. O tipo borderlaine ou limítrofe apresenta, além de várias características de instabilidade emocional, instabilidade quanto a sua auto-imagem, a seus objetivos, a suas preferências, incluindo a sexual.
Na saída desse encontro, lembro-me de um homem de trinta e poucos anos que, pela segunda vez em cerca de dez anos, me procurou com um objetivo único e claro: que eu o ajudasse a compreender quem era a mulher que estava começando a namorar. Será que não foi nele que me inspirei para escrever este livro? Na segunda vez, sua nova parceira apresentava o diagnóstico que eu descrevi há pouco: personalidade impulsiva. “Ela vai mudar, doutor?” “Ela critica as atitudes que toma, acha-as inadequadas, envergonha-se dela?”, pergunto. “Não. Quando reclamo de suas explosões grosseiras e digo que assim vou me afastar, ela rebate dizendo que eu sou um imaturo, que, frente ao primeiro problema, já pulo do barco”. Questionava-se sobre o porquê de mulheres impulsivas cruzarem sua vida. Esta não era a primeira. Elas tomavam a iniciativa. “Por serem impulsivas, tomam a iniciativa quando algo ou alguém lhes desperta desejo”. Mulheres e homens bonitos são procurados por narcisistas, que querem alimentar seu ego, e por impulsivos.
Quando este homem cuja lembrança me fez pensar em escrever o livro deixou o consultório, minha secretária disse que quase desmaiara ao vê-lo e a paciente que entrou a seguir me disse: “Doutor, por favor, me dê o telefone desse gato”. Tanto a secretária como a paciente não eram narcisistas nem impulsivas... acho que não o procuraram. Não será, às vezes, útil ao ser humano ser um pouco impulsivo e um pouco narcisista?
OS TRANSTORNOS DELIRANTES
A conversa gira em torno da boa paixão, que desperta um sentimento gostoso, uma leve euforia, que ajuda o indivíduo a se reunir com o que ele tem de melhor, percebendo o quanto viver é bom.
- O sofrimento está nos extremos: a falta de paixão e a paixão exagerada e cega, sem base na realidade. Há indivíduos que passam a vida sem se apaixonar. Alguns desejam se apaixonar e não conseguem. Podem sofrer de distimia, aquela depressão leve e crônica. A pessoa leva a vida normalmente, porém nada tem muito sabor, nada a empolga. Outros não se apaixonam nem sentem falta disso.
Por exemplo, quem apresenta personalidade esquizóide.
- Jorge, você bem que poderia contar uma de tuas paixões – instiga Larissa.
- Felizmente tive boas paixões, e não só por mulheres, mas também por atividades e por interesses variados. Afinal, quase todas as nuanças desta vida podem despertar nossa boa paixão.
- Jorge, queremos ouvir de ti algo surpreendente – exorta Mirla.
- Está bem, fiz paixões sofridas quando jovem. Algumas mulheres foram vitimadas por minha paixão.
- Ui!
- Não se apavorem, sempre tudo acabou bem. Aliás, orgulho-me de dizer que todas as minhas namoradas se casaram bem.Ou seja, namorar comigo dava sorte.
- Exibido!
- Casaram melhor do que se tivessem casado comigo.
- Falsa modéstia!
- Quase todas. Uma ou duas, não.
- Fale sério!
- Por duas vezes fui vítima de paixão patológica. Vou lhes contar uma dessas, a mais antiga. É bom que vocês saibam da existência de um quadro chamado de transtorno de clerèmbault.
Explico que os chamados transtornos delirantes são subdivididos em: tipo erotomaníaco, tipo grandioso, tipo ciumento, tipo persecutório, tipo somático e tipo misto. Primeiro, é necessário explicar o que é um delírio ou idéia delirante. Consiste numa alteração do conteúdo do pensamento: o indivíduo passa a apresentar idéias erradas, não aceitas pelo juízo normal da realidade. O delírio apresenta quatro características: 1. É uma falsa crença; 2. O portador não tem consciência do distúrbio; 3. É irredutível; 4. Tendência à difusão. Ou seja, vai tomando conta de toda a mente do indivíduo. O delírio pode ser não sistematizado, pequenos fragmentos delirantes, não engloba o todo; ou sistematizado, interpretação total, há um discurso global delirante.
Esses delírios não são bizarros, pois, se o fossem, já iríamos pensar em esquizofrenia. Não são bizarros porque envolvem situações que ocorrem na vida real: ser seguido, envenenado, amado à distância, traído por parceiro amoroso.
No tipo grandioso, o tema central do delírio pode ser a certeza de ter algum grande talento não reconhecido ou de ser o autor de alguma descoberta importante, ou, ainda, de ser uma pessoa importante, diferente, superior.
- Viram o filme K-Pax? O ator assume o papel de um homem que se dizia vindo de um planeta. De resto, ele não apresentava sintomas, era normal.
Passo-lhes mais informações sobre este filme de Iain Softley produzido em 2001. O espectador é levado à dúvida sobre duas possíveis explicações para os acontecimentos apresentados: realidade ou delírio de grandeza. Prot, interpretado por Kevin Spacey, de Beleza americana, pode tanto ser o visitante de outro planeta, como afirma ser, quanto alguém portador de um transtorno delirante persistente de tipo grandioso. O psiquiatra, interpretado por Jeff Bridges, de Tucker e Arlington Road, entende-o como delirante e procura tratá-lo com medicamentos adequados: tioridazina, haloperidol. O delírio se mantém, como, aliás, acontece em boa parte dos casos.
Ian Softley tenta nos deixar na dúvida. Porém, se decidirmos que Kevin Spacey não representa um ET e, sim, um simples terráqueo, teremos uma aula de psiquiatria.
No tipo ciumento, o tema central do delírio é a certeza de estar sendo traído pelo cônjuge ou parceiro amoroso.
No tipo persecutório, o tema central do delírio é a crença de estar sendo vítima de conspiração, de traição, espionagem, perseguição, envenenamento ou intoxicação por drogas, de estar sendo alvo de comentários maliciosos ou obstruído na luta por seus objetivos.
No tipo somático, o tema central do delírio envolve sensações ou funções corporais. Por exemplo: a convicção de estar emitindo um cheiro fétido através da pele ou da boca; a certeza de que certas partes de seu corpo são, contra todas as evidências, malformadas ou feias.
No tipo misto os temas delirantes variam.
No caso do transtorno delirante de tipo erotomaníaco, a idéia delirante é a de que outra pessoa, geralmente de situação mais elevada, está apaixonada pelo indivíduo.
Esse quadro foi descrito pela primeira vez em 1942 pelo psiquiatra francês Clérambault. Envolve um amor romântico idealizado, mais do que atração sexual. A vítima, em geral, detém uma posição social superior. Pode ser uma pessoa famosa no meio ou chefe no trabalho. A pessoa pode manter o delírio em segredo, porém, na maior parte das vezes vai atrás, força encontros, escreve cartas, muitos telefonemas.
- Jorge, por que vítima? Faz bem para o ego se sentir desejado – argumenta Larissa.
- Quando a paixão por nós é delirante, percebemos que nossa vontade absolutamente não é levada em conta, nos sentimos invadidos e transformados em objetos – contra-argumento.
- O chato do Robson! – exemplifica Mirla.
- Jorge, quem faz mais paixão patológica? O homem ou a mulher? – quer saber Bebel.
- Se a amostra estudada for retirada dos consultórios psiquiátricos, encontraremos mais mulheres. Em amostras forenses predominam os homens. O homem é um animal mais agressivo. Acaba entrando em conflito com as leis na tentativa de se aproximar da vítima de seu delírio amoroso. Os homens cometem muito mais crimes passionais do que as mulheres.
- Ufa! Que o Robson não chegue a tanto! – torce Mirla.
Saio do encontro pensando o quanto o gênero masculino é mais violento. No próprio suicídio, as mulheres tentam mais, mas os homens se matam mais. Por quê? Porque usam métodos mais violentos.
BISSEXUALISMO, TRANSEXUALISMO
Jackson conta do último e-mail enviado por Diego do México. Recebido no aeroporto pelo pai da Rosária, um homem simpático, que usa um relógio Rolex e anda acompanhado por seis guarda-costas, foi levado até a mansão dele.
- Na cidade do México há muito seqüestro. Notícia mais do que requentada – censura-se Anderson.
Rosária, que havia viajado em primeira classe dois dias antes, custou para vê-lo. Havia saído com uma amiga.
Na primeira noite foram a um bar, onde quase só havia mulheres, a maioria jovens e bonitas. Porém, algumas usavam tatuagens de tamanho exagerado nos braços e nas pernas e calçavam botinas; outras, o relógio no pulso direito. Veio sentar-se com eles à mesa uma mulher simpática e, pela maneira como se abraçaram e se beijaram, amicíssima de Rosária.
Diego conta ter estranhado tamanha recepção. Porém, logo percebeu que era o jeito afetivo dela, pois ele também fora muito abraçado e beijado. A amiga, Valentine, é alegre e feminina.
Valentine ria e afirmava que ele não iria esquecer o México. Explicou-lhe como eram as mulheres que ali estavam. Muitas eram heterosexuais e apenas curtiam um ambiente diferente. Alguns casais heterossexuais procuravam parceira para uma ménage a trois. Alguns freqüentadores, explicou Valentine, eram transexuais.
- Professor, nosso amigo Diego não é bobo. Logo percebeu que estava num bar de homossexuais. O estranho é que, a partir daí, o texto de seu e-mail migra para assunto bem diferente. Muda para dinheiro. Vou ler: “A moeda daqui é o peso mexicano. As cédulas são de vinte, cinqüenta, cem, duzentos e quinhentos. A de dez não é mais impressa apesar de ainda estar em circulação. Em todas elas está escrito Banco de Mexico. Um forte abraço”.
Ficamos os três sem compreender. Um trecho do e-mail fora apagado? Quem sabe a pressa o fizera pular de um assunto para outro?
- Diego ainda não nos disse se comeu ou não a Rosária – desvia-se do assunto Jackson.
- Quem sabe naquela noite, ao sair do bar, ele fez sua primeira ménage a trois? – fantasia Anderson. – Havia uma fauna naquele bar, hein? Professor, qual a diferença de travesti para transexual?
Explico que travesti é o nome que aparece na imprensa para se referir ao transexual que se prostitui. Não confundir com transvestismo: quando homens heterossexuais usam roupas femininas imaginando-se tanto o sujeito masculino como o sujeito feminino de sua fantasia sexual.
Transexualismo consiste no desejo de viver e de ser aceito como um membro do sexo oposto, habitualmente acompanhado pela sensação de desconforto de seu próprio sexo anatômico e de um desejo de se submeter a tratamento hormonal e cirurgia para tornar seu corpo o mais parecido possível com o do sexo preferido.
- Se sente um homem e tem um corpo de mulher. Se sente uma mulher e tem o corpo de um homem. Portanto, é um problema de identidade, de identidade quanto ao gênero masculino ou feminino.
- Professor, você concorda não ser doença homossexualismo e bissexualismo?
- Anderson, a Classificação Internacional das Doenças escreve textualmente: “A orientação sexual por si só não é para ser considerada um distúrbio”. Na prática do psiquiatra interessa é se a orientação sexual da pessoa é ego-sintônica ou ego-distônica".
- Se o cara se sente bem sendo gay não há distúrbio... – vacila Anderson.
- Sim, porque em relação a isso não há sofrimento interior. Quando ego-distônico, ao contrário, o indivíduo sofre, não quer ser homossexual. Não combina com ele ser homossexual. O mesmo em relação ao bissexualismo.
A “CURA"
Encontro Bebel proferindo uma aula de cosmética para as amigas. Aprendo que batom vermelho pede maquiagem neutra. Presto parcialmente a atenção enquanto procuro alguma mensagem não lida no celular. Um pouco de blush para dar relevo ao rosto, parece que foi isso que ouvi. Tons de bege e marrom nos olhos... - Rimel nos cílios...
Mirla conta-nos que Tiagão, não tendo conseguido falar com Robson pessoalmente nem por telefone, enviou-lhe um imenso fax em cuja cópia se lê: “Robson, alma gêmea, bem sei o quanto sofre quem está a passar pelo que você passa. Leste nos jornais? ‘Atormentado com o fim de seu namoro, um homem matou dez pessoas a tiros e depois suicidou-se na África do Sul. A chacina ocorreu na noite de sábado na província de Mdantsane. Outras sete pessoas ficaram feridas no tiroteio. O homem ficou irritado com a separação de sua namorada e a matou. Depois, dirigiu-se à casa dos ex-futuros sogros e matou outras três pessoas. Dali foi a um local público e abriu fogo indiscriminadamente antes de suicidar-se’.
Conversei com meu irmão psicólogo: quando o narcisismo é ferido, o indivíduo se desespera. Você, alma gêmea, precisa se libertar e, para tanto, precisa entender um pouco de narcisismo.
O estado de libido autodirigida foi denominado por Freud em 1914 de narcisismo. Pois bem, todos passamos no início da vida por uma necessária fase narcisista. Precisamos imaginar que somos o maior e o melhor para aliviar a esmagadora sensação de que não somos nada perto da grandiosidade do mundo. Somos os menores e os piores, no sentido de que nada sabemos fazer. A fantasia do contrário vem nos salvar. Somos os maiores, os melhores, somos como Narciso, aquele da lenda, que, ao ver sua imagem refletida no lago, a achou tão bela que não mais conseguiu erguer a cabeça e ali morreu de fome.
No teu caso Robson, provavelmente o olhar das mulheres seja teu espelho: ‘Espelho meu, existe alguém mais bonito do que eu?’ Bem mais adiante na vida, alguns de nós, não todos, conseguem deixar de atribuir a função de espelho para os demais e resgatá-la em grande parte para si mesmos. Quero saber se tenho valor? Eu mesmo paro e me olho. Nesta fase nem as críticas, nem os elogios nos tocam tanto. Nem as rejeições e os abandonos. Estás compreendendo aonde eu quero chegar alma gêmea? No passado já sofri como tu, por isso te entendo.
Cada sujeito possui um universo restrito de formas para obter prazer narcisista e buscará aquelas atividades que lhe permitam brindá-lo. Todos somos adictos a certas atividades que gratificam nosso narcisismo. A busca do prazer narcisista e a evitação do desprazer orientam a vida como se fossem linhas de um campo de forças invisível para o sujeito. Ante a ausência da atividade narcisista, vêm o tédio, a depressão. É o que acontece, por exemplo, com o estado de ânimo que podem apresentar certos intelectuais numa reunião em que só se dance, em que o debate intelectual não seja possível. Isso eu gosto, aquilo me entedia, muitas vezes tem a ver com a atividade narcisista. A falta de prazer narcisista produz apatia pelo mundo circundante.
Uma vez que a narcisação de uma função tenha acontecido, se, por qualquer causa, produz-se uma falha na mesma, surge o sofrimento narcisista. Por exemplo, a sexualidade masculina. Após uma situação de humilhação, se estabeleceu em ti a ansiedade narcisista. Você está ansioso, procura ansiosamente por Mirla, teu espelho neste momento.
Robson, a raiva narcisista apareceu naquele dia em que você riscou meu carro. Cuidado, ela aparece seja em forma de estouro brusco, seja na forma de vingança retardada, e serve para recuperar na fantasia o sentimento de poderio perdido. ‘Sou poderoso! Posso atacá-lo impunemente’. Engano teu, já orientei a oficina mecânica a cobrar de ti a pintura nova de meu carro. Para encerrar, compre e leia o livro O narcisismo, de Hugo Bleichmar, de onde retirei o presente conteúdo. Lembre-se: teu espelho deve deixar de ser o olhar feminino, deve deixar de ser o olhar de Mirla. Abraço de tua alma gêmea”.
A leitura é seguida de muitas risadas. Concordamos que tudo está bem escrito. Porém, o saber, por si só, não cura.
- Ele escreveu sobre o narcisismo primário e esqueceu o secundário. Não sou mais o narciso, mas alguém é. No caso, Mirla é. Se tiver Mirla, volta a sentir o prazer narcisista – completa Bebel.
- Jorge, eu gostei da história do olhar do outro como nosso espelho. A questão é: a qual outro eu dou a função de espelho? – reflexiona Larissa. – Aos homens? A meu namorado?
- À minha conta bancária? – acrescenta Bebel.
- Essa narcisação de certas relações, atividades, desempenhos se faz ao longo da vida. É um processo longo. Para reverter o quadro, é necessário outro processo. Nada acontece para já. Mirla, o que você está achando das atitudes de Tiagão?
- O que posso dizer, Jorge? Estou contente pela sua postura em me defender. Grata. Mas ele tem algo estranho. É obstinado. Se fixa em algo e só pensa naquilo. Fala muito mais no problema do Robson do que na nossa relação.
- Você já está na fase da paixão em que não consegue mais guardar segredo? – interrogo-a.
- Com Tiagão? Não! Nem sei o que sinto por ele.
OPÇÃO QUE SEMPRE DEVE SER RESPEITADA
Anderson traz a bombástica notícia.
Ambos confessam que, às vezes, arriscam. Anderson bem menos que Jackson. Asseguram, todavia, que vão se cuidar bem mais.
RISCO DE AGRESSÃO
- Que situação... – suspira Mirla. – Estaciono meu carro no Shooping Bela Città, abro a porta, e o que vejo? O dedo do Robson apontado em riste para mim!
Mirla levanta-se e imita seu agressor:
- “Afaste esse louco do meu caminho! Afaste esse louco de meu caminho! Está ouvindo? Eu te mato! ”
Emitimos todos expressões de espanto.
- Fiquei apavorada. Entrei no carro e me mandei. Ele ainda bateu com o punho no vidro. Fui à delegacia de polícia e registrei ocorrência.
- Fez bem! – abona Bebel.
- Contei para o Tiagão e, aí sim, tudo piorou de vez. Ele escutou tudo em silêncio e depois murmurou: “Não deve ter lido direito meu fax... Mas vai lê-lo. Ah! Vai sim”.
Ontem, Tiagão a convidou para jantar e, entre um gole e outro de vinho, foi informada de que Robson, finalmente, lera o fax sobre narcisismo. Tiagão encontrara Robson dentro do carro na saída do trabalho. Batera no vidro e Robson, abrindo um fresta, dissera não querer conversa. Ligara o motor. Tiagão enfiara ambas as mãos pela fresta. Robson, ao mesmo tempo em que acionara o botão que fecha o vidro, arrancara com o carro. Tiagão forçara o vidro para baixo e correra ao lado do carro. O carro disparara e Tiagão ficara com o vidro da janela do motorista quase inteiro em suas mãos. “Sem me cortar – diz ele. – Veja minhas mãos”.
Tiagão ri bastante, solicita mais vinho ao garçom e pergunta: “Quando algo não dá para se resolver por bem, como se resolve?” E ele mesmo responde: “Por mal”. Passara a vigiar os passos de Robson no período da noite, porque de dia, devido ao trabalho, não dispunha de tempo para fazê-lo. Quarta, início da noite, Robson entra no banheiro do shopping. Tiagão faz o mesmo e, de surpresa, passa o braço por seu pescoço e puxa sua cabeça para baixo e para junto de seu tórax. Em resumo, segura Robson com força e o obriga, nesse estado, a ler em voz alta o fax sobre narcisismo.
- Os seguranças do shooping ouviram a gritaria. Polícia, registro de ocorrência... Na janta, disse a Tiagão que não estava gostando de tudo aquilo. Que violência não era comigo. Jorge, não sei o que fazer... Preciso de ajuda.
- Antes de tudo, vamos conversar sobre o risco de agressão de Robson e de Tiagão.
Juntamos as informações que as gurias tinham de Robson: não era brigão, não usava armas, nem tinha antecedentes. Apenas um guri mimado que tem explosões de ira quando é frustrado em suas vontades.
- Tiagão me contou que brigou muito na infância e na adolescência. Morava num bairro onde eram comuns assaltos à noite. Fizera o segundo grau à noite e, quando descia na parada de ônibus, andava segurando uma pedra na palma de cada mão. Tornara-se famoso pela força do soco na orelha: o mais forte da vila.
Portanto, de forma semelhante à avaliação do risco de suicídio (auto-agressão), avaliamos o risco de agressão ou de homicídio (heteroagressão): história prévia, padrão familiar, cultura mais ou menos agressiva do meio onde cresceu e formou sua personalidade, desejos heteroagressivos, planos, tentativas. A agressão faz parte dos instrumentos que usa para “resolver” os problemas cotidianos? É ego-sintônica? Ego-distônica?
Mirla conta que questionou Tiagão sobre sua obstinação, sua idéia fixa e, lembrando do que lera em meu site, perguntou sobre se tinha algumas manias. Ele, mais do que pronto, revelou se tratar para transtorno obsessivo compulsivo. Toma medicamentos e teve uma melhora de uns sessenta por cento, mas ainda conserva algumas manias. Por exemplo, sente necessidade de colocar tudo no lugar, tudo em “ordem” para poder dormir em paz. Inclusive os problemas interpessoais. Costuma ligar para as pessoas com as quais teve qualquer desavença para ter certeza de que está tudo resolvido. Quando não consegue, anota na agenda o problema e o que fará no dia seguinte para resolvê-lo.
- Viram o filme Melhor é impossível? (As good as it gets?) Jack Nicholson no papel de um escritor portador de TOC? Oscar de melhor ator em 1997.
A medicina chama de transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) a um quadro que a população costuma designar como "manias", que não sabe que é doença e que tem tratamento. O TOC acomete 2% da população. Numa cidade de 400.000 habitantes, 8.000 sofrem deste problema. Em geral, o TOC surge na adolescência ou no início da idade adulta. Mesmo parecido, não é o mesmo que personalidade obsessivo-compulsiva. Difere por ser uma doença e não o jeitão que acompanha o indivíduo desde sempre.
Exemplos: 1. Uma adolescente passa horas lavando as mãos porque é permanentemente perturbada por pensamentos de que pode ter se contaminado ao tocar maçanetas e outros objetos "sujos". 2. Uma jovem mãe é atormentada pela idéia de que vai ferir seu filho pequeno com uma faca e, por isso, recusa-se a tocar em facas e em outros objetos pontiagudos. 3. Um homem, sempre que sai de casa, tem de voltar várias vezes para verificar se o gás do fogão está desligado, se as torneiras estão fechadas, se a porta foi chaveada, etc.
O paciente apresenta obsessões: idéias repetitivas que vêm à cabeça contra a vontade do indivíduo, o qual mesmo as julgando absurdas, não consegue se ver livre delas. Seu conteúdo pode estar ligado a:
Dúvidas. Indecisões permanentes quanto ao caminho a seguir, quanto ao que fazer, quanto a uma escolha, quanto a se realizou bem ou mal uma tarefa. Por exemplo: preencheu um cheque ou recibo com o valor certo? Qual rua deve escolher para transitar? Qual cor de camisa deve escolher para comprar?
Impulsos. Contrários a sua vontade. Por exemplo: de estrangular filho recém-nascido; de olhar para a região dos genitais das pessoas.
Medo. De perder o controle e fazer algo embaraçoso. Por exemplo: teme tirar a roupa em público; teme proferir palavrão durante culto religioso.
Ruminação. Uma cadeia sem-fim de pensamentos, em geral, sobre eventos futuros ou sobre o sentido da vida.
Sujeira e contaminação. De ter se impregnado por fezes de animais, suor, sêmen, toxinas, radioatividade, etc.
Agressividade. Idéia repetitiva de que machuca as pessoas sem se dar conta. Ex.: viajando de automóvel, lembra-se de ter se deparado com um pedreste no acostamento; será que não o atropelou?
Pode apresentar também compulsões: comportamentos estereotipados e repetitivos, que ocorrem contra a vontade do paciente para, absurdamente, evitar que algo ruim aconteça, como doenças, acidentes, perdas. As compulsões podem estar relacionadas a:
Limpeza/descontaminação. Lavar repetidamente as mãos, roupas, objetos pessoais que tenham sido tocados ou "contaminados" de alguma forma; tomar banhos prolongados com uso de álcool ou desinfetantes.
Verificação. Testar repetidamente determinados atos. Por exemplo: voltar inúmeras vezes para verificar se a porta está fechada; telefonar inúmeras vezes ao médico perguntando se Aids pode ser pega por picada de pernilongo.
Repetir ou tocar. Acender e apagar a luz sempre trinta e três vezes; tocar todas as plantas que encontra pelo caminho.
Rituais. Sempre dobrar à direita, nunca à esquerda; dar quatro pulos antes de entrar no elevador.
Colecionismo. Não jogar nada fora. Ex.: pilhas de jornais; todas as lascas de unhas cortadas.
Lentificação. Demorar muito tempo para fazer algo que normalmente se faz rapidamente. Por exemplo: levar 20 minutos para calçar uma meia; 20 minutos para escovar os dentes.
A causa está relacionada com uma alteração na bioquímica cerebral, que faz com que o indivíduo desenvolva os sintomas. Medicamentos de tipo antidepressivo são muito eficazes. Também um tipo de psicoterapia: a cognitivo-comportamental
Resolvi parar por aí, percebi que Bebel bocejava.
- Estou me tornando um professor numa mesa de bar, um chato.
Mirla, retocando a pintura das unhas, concorda.
SÍNDROME DE PÂNICO
Uma boa surpresa: Diego comparece ao nosso encontro. Chegara ontem do México. Após muitos brindes de boas-vindas e alegres cobranças dos empréstimos financeiros, é intimado a mostrar uma foto de Rosária.
- Olha só! Bonitinha. E eu que cheguei a temer que fosse um orangotango qualquer. Comeu?
- Devagar pessoal. Preciso de tempo para me readaptar ao clima de nossos encontros.
Camisa desabotoada na gola, gravata com nó afrouxado, olheiras nos olhos. Diego quer mesmo subir na empresa. Não poupa esforços. Aperfeiçoa o inglês, faz horas extras...
Anderson e Jackson contam, alegres, o resultado do exame laboratorial: ambos não estão contaminados pelo HIV. Mas terão de repeti-lo. Fizeram o exame no laboratório do Hospital São Vicente e viram lá uma cena a qual precisam relatar: um homem tendo um ataque de pânico.
- O sujeito era médico e já tinha tido o mesmo ataque. Gritava o nome dos medicamentos que, na outra vez, lhe haviam feito bem. Jamais vou esquecer – atesta Anderson.
Explico que o transtorno de pânico consiste numa ansiedade muito forte que aparece de repente e sem motivo. Pelo menos 1,6% dos adultos terão esse problema alguma vez na vida. Ou seja, numa população de quatrocentos mil habitantes, 6.400 apresentarão o problema.
As crises de pânico duram alguns minutos e são acompanhadas de vários dos seguintes sintomas: palpitações (o coração "dispara"), dores no peito, tonturas, náuseas, dificuldades para respirar, sensação de formigamento ou de fraqueza nas mãos ou em outra parte do corpo, calafrios ou ondas de calor, sensação de que algo horrível está por acontecer e de que se está impotente para evitar tal acontecimento, medo de morrer, medo de perder o controle e fazer algo embaraçoso.
Por causa dos sintomas, o paciente procura o cardiologista e faz, muitas vezes, uma exaustiva investigação, não é encontrada nenhuma alteração.
Há um desequilíbrio na bioquímica do cérebro que faz com que a ansiedade e o medo, tão necessários para nos alertar frente aos perigos, sejam ativados sem motivo. O paciente tem tudo que uma pessoa apresenta frente a um grande susto, a um grande medo (o coração dispara, sudorese, etc.). Porém, ele não está frente a perigo algum. Basta usar alguns medicamentos que regulam a bioquímica alterada e tudo desaparece.
- Pois é... – balbucia um distraído Diego – Preciso saber, de certeza, se sexo oral transmite Aids.
- Opa! Vem coisa interessante aí. – alegra-se Jackson. – Não que a aula do professor tenha sido ruim. Mas sexo oral, convenhamos, para mim, pelo menos, é mais atraente que todos os distúrbios bioquímicos juntos.
- É difícil contar... Peço mil segredos... Rosária é bissexual – surpreende-nos Diego.
- Biiiisexxuall! Senhoras e senhores! Aí vem a biiiisexxuall Rosária! – Jackson imita um apresentador de circo e recebe um tapa para-te-quieto de Anderson.
Um tanto reticente, Diego principia a narrar sua estada no México.
Todas as noites Rosária optava pelo mesmo bar, aquele descrito no e-mail, e sempre Valentine vinha se sentar com eles. A conversa, invariavelmente, recaía sobre o comportamento de um ou outro casal de mulheres que observavam.
Aprendeu a perceber que há duplas de mulheres nas quais uma se revela com trejeitos masculinos e a outra se mostra bem feminina. Há duplas em que ambas são femininas. Valentine costumava criticar o casal formado por mulher masculina versus mulher feminina. Na gíria brasileira: sapatona versus sandalinha. Em contrapartida, elogiava o casal mulher feminina versus mulher feminina.
Após um almoço na casa de Rosária, com lagosta na mesa e o pai dela na cabeceira visivelmente alegre, Diego viu-se obrigado a encarar a verdade: Rosária era bissexual. Mais ainda: ultimamente, passara a se apresentar em público com a namorada.
- A pedido de seu pai, já resignado com seu bissexualismo, estava disposta a esconder a relação com Valentine e tornar pública a relação com um homem.
- No caso... – movo meu dedo indicador.
- Sim, eu.
Creio que foi a seriedade de Diego que fez seus amigos calarem as tradicionais brincadeiras. Permanecemos em silêncio até se tornar embaraçoso. Então, solicitamos o cardápio ao garçom e fizemos alguns pedidos.
- E a moeda mexicana? – é Jackson a quebrar o gelo.
ESQUIZOFRENIA
- Sabe, às vezes me pergunto: são tantos os problemas do mundo e eu aqui voltada para os meus – censura-se Nicole.
A discussão gira em torno da autocensura de Nicole: sentimo-nos bem quando participamos dos problemas da comunidade. Quem vive num país estrangeiro não participa, é como um peixe fora d’água. Por outro lado, melhorar a nós mesmos é dever nosso, inclusive para com a comunidade, pois somos membros dela e, assim, seremos melhores.
Vejo as costas do velho de cabelos bem brancos que se afasta lentamente e escuto meu pensamento: quando vamos encerrar nossos encontros? Será que a atenção para outros assuntos, como vejo acontecer agora, significa que meu recado já foi dado? Reconheço que estão sendo momentos agradáveis, que há alegria, há calor humano. Mas um dia a água do poço seca e deveremos buscar novas atividades produtivas.
- Jorge, você está apaixonado? Está lonnnnge! – Bebel cutuca meu ombro – Escute como foi a vida do César Franck da Larissa.
Peço um cafezinho ao garçom e desculpas a Larissa. Seu namorado contara que, assim como César Franck, tivera um pai muito intrusivo em sua vida, que comandava não só seu presente, mas também seus sonhos futuros. Queria-o médico-cirurgião, e ele, sem o mesmo desejo, nunca se esforçou o bastante para passar no vestibular. Mas, ao mesmo tempo, reconhece que foi graças ao pai que, desejando-o culto, levou-o a aprender música.
- Gurias... – é Larissa em tom carinhoso – Ele conta sua vida com tanta resignação... com tanta paz. Não pensem que ele está a criticar seu pai, a se queixar da vida. Não, apenas relata. Disse ele que, se nossa relação avançar, fluir leve... que bom... se não... Paciência.
Nossos olhares como que voam para longe, para um mundo sereno...
Nicole acorda-nos:
- Meu namorado trabalha na empresa da família do teu César Franck.
- Você tem namorado?! – pergunto de sopetão. – Nunca falou nele.
Percebo feições angustiadas no rosto das gurias. De todas. Mais ainda em Nicole, cujo cabelo crespo, ressecado, maltingido de loiro, me parece, até ele, tenso e assustado.
- Ainda vou falar... Ele disse que César Franck é uma pessoa boa, culta, mas bebe muito vinho.
- É esse seu defeito. Mas não fica agressivo. Apenas mais falante. Escolhe os restaurantes pelo cardápio de vinho. Já é alcoolismo, Jorge?
- Quem é que ficou de trazer informações sobre dependências químicas?
- Gurias! Eu quero falar sobre mim! Antes que eu perca a coragem. Sobre meu namorado...- anima-se Nicole.
Todos os nossos olhares se voltam, como que num movimento coordenado, em direção a Nicole.
- Não! É melhor começar com meu irmão. O sofrimento é maior, mas não sinto a vergonha que sentiria se viesse a falar em meu namorado.
As gargalhadas de uma mesa próxima me irritam e, percebo, a Nicole também. Com voz embargada Nicole relata ter apenas um irmão, dois anos mais velho, Lino. Seu pai é muito, muito quieto, já sua mãe é falante e afetiva. Havia paz em sua família. O irmão era calado como o pai, mas tinha alguns amigos e estudava com sucesso. Tratava-a bem e, inclusive, procurava protegê-la. Buscava-a na casa de amigos para que não voltasse sozinha à noite, coisas assim. Contava-lhe seus planos: sonhava em ser piloto de avião. Seu irmão tivera apenas uma namorada.
- Nicole – cochicha Bebel com os olhos vermelhos – conte ao Jorge que fui eu.
Após um silêncio contraído em que as gargalhadas da mesa próxima voltam a me irritar, Bebel sorri:
- Jorge, fui namoradeira desde pequena.
Todos sorrimos, menos Nicole, que retoma a palavra.
- Tudo começou quando eu tinha dezesseis anos e ele, dezoito. Sofri muito ao perceber que eu não mais conseguia me entender com meu irmão. Até então, nossa comunicação fluíra fácil. Agora, eu falava grego e ele troiano, porque ele fava um idioma que nunca existiu.
Nicole descreve que o irmão saltava de um assunto para outro. De repente, era como se “saísse dos trilhos” e enveredasse por um assunto que nada tinha a ver com o anterior. Passou a afirmar que pensamentos estranhos haviam sido colocados dentro de sua cabeça contra sua vontade. Depois, que havia duas vozes conversando entre si dentro de seu cérebro.
E na escola virara alvo de chacotas. Os vizinhos de rua, antes seus companheiros, evitavam-no.
- A namorada... com toda a razão Bebel... se afastou. Sei que você também sofreu.
Bebel, que agora chora, aperta a mão de Nicole.
Há lágrimas nos olhos de Larissa e de Mirla. Nos meus também. Nesses longos anos de profissão sofri em várias ocasiões ao acompanhar o surgimento dos sintomas da esquizofrenia em jovens até então saudáveis. É um choque. Uma bofetada.
- ...Lino não mais saía de casa. Todos no mundo eram perigosos. Houve momentos em que só não se sentia perseguido pelo pai. Absurdo você notar que teu irmão, teu amigo, de repente te olha com aquele olhar desconfiado e começa a se proteger de ti. Um dia, abriu a janela de nossa sala e começou a gritar palavras sem nexo e a esbravejar. Explodi: “Chega, Lino! Pare com isso! Volte à realidade! Volte a tua vida!” Ele nem me ouviu. Chamamos um médico e então começaram as internações psiquiátricas.
Enquanto Nicole chora baixinho de mãos entrelaçadas com Bebel, me vem à lembrança o primeiro caso que acompanhei: de uma adolescente, inteligente, atenciosa. Anos após a reencontrei, obesa, à saída de um supermercado, acompanhada de sua mãe. Fiquei feliz por ela ter me reconhecido. Comecei a conversar alegremente com ela. A dura realidade voltou a se apresentar: aquela moça outrora lúcida falava, na metáfora recém-ouvida de Nicole, troiano.
- A doença é muito triste. O trem da vida segue e este nosso irmão, nosso namorado, nosso amigo é desembarcado à força... É uma das situações mais tristes... – ressalto tangido pela emoção.
- Ele só transou comigo – murmura Bebel – E apenas duas vezes...
- Como ele está agora, Nicole?
- Jorge, com esses modernos medicamentos, ele está quase sem sintomas. Mas está ainda de fora da vida. Quase não fala com ninguém. Pouco sai de casa, sabe. Não tem condições de se sentar como nós numa mesa de bar e falar de seus namoros. Não os tem e nunca os terá. Dá respostas breves, lacônicas, vazias, suas idéias se empobreceram.
Tenho vontade de dizer que já isolaram genes causadores da esquizofrenia. Para quê? Nicole e seus pais devem acompanhar todas as novidades nesta área. Percebo que ela já acumulou muito conhecimento sobre a doença.
Perguntada pelas amigas, passa, com minha ajuda, a descrever esta que é a doença psiquiátrica mais grave e que atinge, não se sabe com exatidão, no máximo 1% da humanidade. Em geral, tem início no final da adolescência ou no início da vida adulta. O indivíduo entra em psicose, ou seja, seu teste de realidade fica prejudicado e ele confunde imaginação com realidade.
Altera, e muito, algumas das funções mentais. Nossa mente é provida da capacidade de pensar, de memorizar, etc. São dez as funções mentais: atenção, sensopercepção, memória, orientação, consciência, pensamento, linguagem, inteligência, afeto e conduta.
No caso da esquizofrenia, são principalmente prejudicadas as funções sensopercepção, pensamento, afeto e conduta.
Sensopercepção: captar nossa realidade externa através da visão, da audição, do olfato, do gosto, do tato. Na esquizofrenia, essa função se altera a ponto de apresentar o que em psiquiatria chamamos de alucinação. Alucinação é a percepção sem objeto ou estímulo de algo que não existe em nossa realidade externa. Pode ocorrer em qualquer modalidade sensorial, porém o mais comum é que ocorra na audição. O paciente ouve vozes inexistentes e considera-as distintas de seus próprios pensamentos. Inclusive, muitos descrevem a existência de duas ou mais vozes conversando entre si.
Na função pensamento, em geral, alteram-se o curso e o conteúdo. O curso não flui mais através de seu leito natural. O paciente salta de um assunto para o outro, “sai dos trilhos”. Às vezes, seu discurso está tão desorganizado que expressa não mais do que uma “salada de palavras”.
No conteúdo do pensamento notamos o aparecimento de idéias delirantes ou delírios: idéias erradas, o portador não tem consciência de que existem em razão de uma doença; são irredutíveis e têm a tendência de se difundir, tomando conta de todo o pensamento do indivíduo. Na esquizofrenia predominam os delírios persecutórios, que levam a pessoa a acreditar que está sendo enganada, seguida, espionada ou ridicularizada. Também é freqüente a presença de delírios de referência: a pessoa crê que certos comentários, gestos, notícias de jornais, letras de músicas, telejornais e outras tantas coisas mais são dirigidos especificamente a elas. Quando o delírio é bizarro, indica mais ainda a presença de esquizofrenia. São bizarros aqueles delírios implausíveis, incompreensíveis e que derivam das experiências comuns da vida. A falsa crença de estar sob vigilância policial é um delírio não bizarro. Mas crer que seus pensamentos foram retirados por alguma força externa – extração de pensamento – ou que foram colocados em sua mente – inserção de pensamento – é considerado bizarro.
Esses sintomas – alucinações, delírios, desorganização do discurso - são enquadrados na categoria de sintomas positivos. Refletem excesso ou distorção de uma função mental.
São considerados sintomas negativos aqueles que acarretam restrições, perda de função. Por exemplo: na função mental afeto ocorre um embotamento; no pensamento, ocorre o que chamamos de “alogia”, pobreza de conteúdo; na função conduta, ocorre abolição, incapacidade de iniciar ou persistir em uma atividade; permanece-se sentado por longos períodos de tempo e demonstra-se pouco interesse em participar de quaisquer atividades.
Essa doença aparece entre os quinze e os trinta e cinco anos, raramente antes ou depois.
Concluídas as explicações sobre a doença, Mirla pergunta a Nicole:
- Você já conseguiu se resignar?
- Não sei. Seguidamente me coloco no lugar de Lino e sinto uma tristeza sem-fim. Como pode ele perder toda essa vida maravilhosa que nós estamos tendo?
- Você sente algum tipo absurdo de culpa? – interrogo-a.
- Por que absurdo?
- Não é absurda a culpa?
- Sei... – balbucia pensativa Nicole. – Para mim, minha culpa não parece absurda.
- O que você fez ou deixou de fazer por Lino? – continuo.
- O psiquiatra dele já me disse que, se alguém deixou de fazer algo, foi a humanidade por não ter investido mais em pesquisas para descobrir a cura das doenças do cérebro. Mas... contra toda a lógica, eu carrego uma certa sensação de culpa.
- Tristeza é diferente de culpa. Lino anda triste?
- Em alguns raros momentos ele se queixa, muito raros. Do contrário, parece adaptado a sua nova vida. Não parece sentir falta de ir a uma faculdade, de conversar em mesa de bar, de namorar.
- O ser humano tem uma capacidade fantástica de adaptação – sustento. - Fazer o quê, não é? Sei que Lino sofre as perdas que teve. Mas isso em breves momentos, quando tem a percepção da tragédia.
- O horror dos horrores... eu que fui namorada dele... lembrar ele cheio de vida e vê-lo agora...
- Quando eu fiz vestibular para medicina o tema da redação foi: “Os que choram são os que sabem” – divago.
- Acho que todos aqui assistiram a Uma mente brilhante. A esquizofrenia do matemático, do Nash, não era tão grave ou o filme não espelha bem a realidade – analisa Nicole.
- São vários os tipos de esquizofrenia com evoluções diferentes. Muitas evoluem muito bem, felizmente. Outras não. O filme não é biográfico. Ouvi Goldsman, o roteirista, dizer numa entrevista que a história que colocou na tela é semificcional. Nela Nash adoece aos vinte anos. Na vida real, foi aos trinta, fato que deve ter influído na sua boa evolução. Ele teve dois filhos, um deles, o mais novo, infelizmente, também sofre de esquizofrenia. Nash doou um quarto dos direitos autorais para cada um dos filhos. O mais velho, inclusive, a pedido de Nash, fez uma ponta no filme. É um dos enfermeiros que carregam Russel Crowe para a sessão de insulinoterapia.
Ao encerrar nosso encontro, abraço Nicole.
- Os que choram são os que sabem – repete ela esboçando um leve sorriso.
QUANDO O HOMEM NÃO MANDA
Anderson está taciturno. Tamborila na mesa com os dedos. Algo o preocupa, porém não a ponto de descuidar de seu cabelo. O cavanhaque segue bem aparado. E, como sempre, sua camisa, de tão bem passada, parece engomada.
A inquietude faz com que Jackson ordene:
- Desumbucha logo!
Anderson retira os óculos de aros azuis e coloca-os com vagar sobre a mesa. Noto que sua camisa, que parece, sim, engomada também é de cor azul, um azul mais claro.
- Cruzo por Júlia no Shopping Bourbon e ela vira acintosamente o rosto e não me cumprimenta. O pai dela sai enquanto que eu entro num banco. Ambos ao mesmo tempo na porta giratória, meu cumprimento não recebe resposta. Minha mãe é questionada no cabeleireiro: “É verdade que Júlia fez aborto?”
Anderson conta das tentativas mal-sucedidas de conversar com Júlia por telefone. Seu celular estava sempre desligado e, no telefone da residência, a invariável resposta: “Não está”. Continuara insistindo até que o ex-sogro ao telefone lhe dissera: “Ainda não se flagrou que minha filha nada tem a falar contigo?” “Ouvi uns boatos e queria esclarecer...” “Esclarecer? Estás brincando! Alguém te pediu dinheiro? Então, ó, bico calado!”
- Professor, Júlia engravidou de mim e abortou sem sequer me consultar!
- Por quê, cara?
- Ora, Diego, e se eu quisesse ter o filho? Alguém neste mundo tem o direito de abortar um filho meu contra a minha vontade?
Discutimos e não alcançamos uma solução harmoniosa para a questão. Do ponto de vista prático, o feto está no corpo da mulher e não no do homem. Portanto, quem decide é ela. Ao homem resta acompanhar a decisão da mulher.
DEFEITOS HUMANOS
- Vocês lembram, o Danilo tem um primo meio delinqüente que foi como seu irmão mais velho – Bebel dá início ao diálogo da noite.
- Que foi seu modelo até há pouco – confirmo.
- Aos poucos, Danilo está podendo ver quem é o primo. Agora percebeu que ele sofre do mal da inveja. Danilo conseguiu um estágio nos Estados Unidos e, ao contar a notícia ao primo, percebeu nele feições de contrariedade. Mais ainda, ouviu dele somente críticas e desdém. Danilo iria perder tempo e dinheiro. Chegou a verbalizar: “Grande merda morar nos Estados Unidos”.
- Você deve estar chateada – presume Mirla.
- Por Danilo ir para longe? Não temos compromisso. Ao contrário, gostei porque logo pensei: “Assim poderei viajar para lá. Paro com ele, gasto menos”.
- Bebel não sofre do mal da inveja, um dos piores defeitos humanos - considero. – Vocês devem se precaver contra ela. A começar por detectá-la quando ela surge em alguém de suas relações ou em vocês mesmos.
Aproveito para explicar que a palavra “inveja” vem de invídeo, que significa olhar mau, ter olho grande, secar com meu olho grande alguém. A principal razão da inveja reside num sentimento de incapacidade de viver os próprios sonhos, de alcançar metas, de realizar-se.
- Quando carrego dentro de mim a sensação de capacidade, eu gosto de ouvir de um amigo que ele fez a “volta ao mundo”. Que bom, significa que é possível dar a “volta ao mundo” no sentido de realizar os sonhos, ou seja, reforça ainda mais a minha sensação de que também vou conseguir me realizar. Em Bebel surgiu a sensação boa: é possível, sim, para mim, também viajar aos Estados Unidos.
- Vou sentir falta de algumas coisas que fazemos sob as cobertas. Mas na soma dos prós e dos contras, a notícia me chegou como notícia boa.
- A sensação de incapacidade me faz querer destruir. Como não me sinto capaz de realizar meus sonhos, sofro menos se não vejo ninguém realizando sonhos. Desfaço: “Que bobagem dar a volta ao mundo! Quanto gastou?!” Muitas vezes a sensação de incapacidade, matriz da inveja, é exacerbada ao escolhermos metas inadequadas para nós.
Explico que as raízes da inveja estão no início da vida. Todos a experimentamos e, por isso, é impossível não tê-la em nosso cofre mais secreto. Questão de grau: de muita inveja a muito pouca inveja.
- É fundamental perceber que somos sim capazes para muita coisa.
A inveja começa na relação com quem nos alimenta, representada pelo seio materno. Quando queremos mais alimento e não temos, não toleramos a frustração, ficamos com raiva de quem tem o alimento. Com inveja dele, queremos destruí-lo. A inveja consome o invejoso, que acaba abandonando a si mesmo. Ao invés de se construir, ele perde energia odiando.
- E o ciúme, Jorge? – pergunta Larissa.
- Surge mais adiante em nosso desenvolvimento psicológico. A inveja é um sentimento mais antigo. O ciúme é algo que se passa a três, portanto já exige uma socialização. Implica a disputa com outro por algo ou por alguém. Pela teoria psicanalítica, o ciúme liga-se ao Complexo de Édipo. Já a inveja é anterior, é pré-edípica.
- Bebel, jura que você não tem ciúme do Danilo e que ele não tem ciúme de ti? Sabe assim? – duvida Nicole.
Preciso falar ainda hoje com meu colega Jorge Ignácio sobre um paciente que lhe encaminhei. Por discrição, telefono da calçada em frente ao restaurante, sem que ninguém por perto ouça. Aproveito para elogiar o artigo que ele escreveu num jornal sobre os jovens que, induzidos por adultos, se tornam terroristas suicidas. Um absurdo! Como um adolescente pode ter suficiente discernimento a ponto de entregar a vida por uma ideologia que já recebeu pronta?!
Ao retornar à mesa, intrometo-me no diálogo das gurias:
- Vocês acham que amizade colorida é mesmo possível?
- Só para Bebel – ironiza Nicole.
- Ouviram “Say goodbye” de Dave Matthews? – pergunto com a segurança de quem traz a letra no bolso traduzida pelo meu filho Aurélio.
- Danilo gosta de Dave Matthews, já me fez ouvi-la e já me fez pensar sobre a letra. E nós dois ficamos em dúvida. Só que é um pouco diferente de nosso caso porque não éramos grandes amigos antes de nos envolvermos. Estávamos recém fazendo uma amizade quando nos tornamos amantes. Se fôssemos amigos há tempos... Não sei não... Acho que no dia seguinte... diga adeus. Uma amizade colorida tem já de começar colorida.
A tradução passa de mão em mão, trechos são lidos em voz alta: “Então aqui estamos hoje à noite / Você e eu juntos / A tempestade lá fora, o fogo está brilhante / E em seus olhos eu vejo ? O que está em minha mente / Você me deixou selvagem ? Me virou por dentro / E depois, o desejo, veja, está arrepiando / Pesadamente aqui dentro / E sei que você se sente da mesma forma / Eu realmente sei / Agora vamos fazer essa uma noite / Amantes por uma noite, amantes por hoje à noite”...
- “Amanhã de volta a ser amigos”... – fala alto, quase gritando, Mirla. – Não acredito. Concordo com o final: “E amanhã diga adeus”. Infelizmente, é assim...
TRANSTORNO DO DÉFICIT DE ATENÇÃO
- Professor, concluí que não sou um don juan clássico. Mas sou um clássico portador do transtorno do déficit de atenção – diagnostica-se Jackson.
- Falando em don juan e na palavra “clássico“, vocês devem assistir a Casanova, de Fellini.
Descrevo a seqüência em que Casanova é levado, na presença dos participantes de uma festa, a competir com um empregado para determinar quem conseguiria ter mais relações sexuais num tempo determinado. Quando termina triunfante, fica evidente o contraste entre seu júbilo narcisista e o sofrimento de sua companheira ocasional ao reconhecer ter sido o meio usado para que ele provasse a sua superioridade, isto é, fora um objeto da atividade narcisista dele.
Jackson conta ter assistido ao filme Don Juan de Marco e ter lido sobre o narcisismo. Compreendeu que o prazer narcisista é fonte de adição: uma vez experimentado, deseja-se repetir. Vicia.
- Não há ninguém que escape dele, mas o grau de fixação, a modalidade do vínculo, o nível de repressão e de sublimação variam de um sujeito para outro – esclareço.
- Há aquele que quer ser “o cara!” Mas quer ser o único a ser o “cara!” – especifíca Jackson.
- É um sujeito que não encontra paz, pois ninguém consegue despertar a admiração incondicional dos outros em todos os ambientes que freqüenta – prossigo no diálogo com Jackson. - Sofre menos aquele que deseja ser “o cara!”, mas não necessita possuir essa posição com exclusividade. É possível vê-la também em outros. Exemplo: a megalomania familiar, da raça superior, do povo escolhido.
- Tipo um: só ele é o “cara!” Tipo dois: ele e outros são o “cara!
- No terceiro tipo, encontramos alguém que necessita, em determinada área, ser o melhor. Poderá aceitar, inclusive com humor, não ser perfeito em outras. Mas ai daquele que colocar em dúvida sua condição de melhor naquilo no qual repousa toda a sua auto-estima! No quarto tipo situam-se aqueles que sentem prazer ao se perceberem vistos pelos outros como dignos de admiração, mas sem necessitarem da posição de serem os melhores em todas ou em uma área.
- Professor, há mais um tipo, o quinto. Li que é alguém em cujo interior está presente, em algum grau, o desejo de ser o “cara!”. Mas não é desejo forte a ponto de dominar sua vida.
- Neste quinto tipo, não há a necessidade de haver admirador ou admiradores. A figura do admirador não é projetada sobre alguma ou algumas pessoas. Está presente apenas em suas fantasias – complemento.
- Sinceramente, professor, me enquadro neste último tipo. Tenho algumas fantasias eventuais e vagas de ser “o cara!”, mas ando atrás de admiradoras ou admiradores. Minha busca por variadas mulheres é porque não consigo me concentrar. Se passa uma mulher aqui, eu já a acompanho com o olhar. Se passa outra, eu também acompanho esta outra.
Questionado por Anderson, concordo em descrever o transtorno de déficit de atenção (TDA).
- Jackson, para teu ego é mais negócio ser portador de TDA do que ser um narcisista, não? – dou-me conta de que estou assimilando o jeito impiedoso dos guris. Normalmente seria mais cuidadoso no opinar.
A nossa mente possui algumas funções, como as da memória, do pensamento, da inteligência. Outra delas é a da atenção. Na atenção encontramos duas qualidades: tenacidade e vigilância. Tenacidade é a capacidade de concentração, ou seja, de permanecermos atentos a uma mesma atividade. Vigilância é a capacidade de observarmos o que se passa no meio. Assim, se estamos concentrados assistindo a um programa na televisão, mas alguém entra na sala, percebemos sua presença porque estamos também vigilantes.
Algumas pessoas apresentam-se hipervigilantes e hipotenazes, ou seja, apresentam dificuldades para se concentrar e estão sempre e facilmente mudando de interesse. Os estímulos novos lhes chamam a atenção e elas vão, assim, passando de um para outro. São pessoas, em geral, hiperativas. E muitas tiveram problemas por isso na infância e na adolescência.
Os sintomas do TDA são: atenção diminuída, mantida apenas em atividades que motivam muito, por exemplo, videogame ou internet; hiperatividade e coordenação motora diminuída; impulsividade; desorganização; labilidade afetiva; relações interpessoais conflitadas.
Este problema está relacionado a alterações na bioquímica do cérebro e é corrigido pelo uso de certos medicamentos.
PERSONALIDADE ESQUIZÓIDE
Nicole está ansiosa para falar, chegou a levantar o dedo indicador no tradicional gesto de quem pede a palavra. As amigas discutem moda feminina.
- Gurias, hoje é minha vez! – apressa-se Nicole
- Quero falar sobre o Tiagão! – tenta impor Mirla.
- Pedi primeiro – insiste com o olhar sedutor Nicole. – Sobre meu namorado – completa com tremor na voz.
Não precisou pedir mais. Silenciamos todos para ouvi-la.
- Vocês sabem. Namoro o Clézio há tempos e não falo nele. Para ninguém. Sinto vergonha de falar nele. Por quê? Talvez porque ele não seja a pessoa que eu gostaria para mim. Talvez porque eu me envergonhe do jeito dele. Talvez por me envergonhar do jeito dele me sinta culpada e não consiga me afastar dele. Talvez porque ele é, em certos aspectos, parecido com meu irmão. Não, ele não é esquizofrênico, mas creio que ele tem uma personalidade esquizóide. Andei lendo... quero confirmar com o Jorge.
- A propósito, sabe o que o Franck... Sim... é o apelido carinhoso que dei a meu namorado. O Franck, que é dono da firma onde ele trabalha, disse que o Clézio se basta a si mesmo.
- Sinto vergonha de contar. Só existe o namoro por insistência minha. Clézio nunca me procura, nem sente a minha falta. Nunca quer ir a festas. Prefere ficar em sua garagem, às vezes lidando no motor de seu barco, às vezes jogando xadrez sozinho, às vezes nada fazendo. E aí vem a chata da Nicole... – ri envergonhada com lágrimas nos olhos. – Sinto que o incomodo quando o procuro, sabe. Sou louca, não?
- Finalmente você está falando – anima Mirla. – Nós comentávamos entre nós... Tentamos falar contigo, você ficava muda.
- Eu ouvi vocês contando aqui, abertamente, os problemas nos relacionamentos sem morrer de vergonha – ri enxugando com o lenço as lágrimas – Fui perdendo a vergonha.
- Por algum motivo importante você está precisando manter essa relação, mesmo indo contra aquilo que você considera adequado. Que achou de minha interpretação, hein Jorge? – Bebel sorri buscando descontrair a todos.
- Gostei.
Mais solta no falar, Nicole diz que um dia vai terminar o namoro e que, provavelmente, Clézio nunca mais irá namorar. Talvez tenha algum encontro sexual, mas namoro, namoro, não. Ele não sente falta, nem deseja. É esquizóide, não, Jorge?
- Primeiro vamos afastar a possibilidade de um problema bem mais leve: a fobia social.
Explico que esta fobia atinge um número muito grande de pessoas. Algumas pesquisas chegaram a encontrar esse quadro em até 13% das pessoas pesquisadas. Como diz o nome, a fobia social caracteriza-se por medo/ansiedade em situações sociais. Por exemplo, ansiedade ao ser apresentado para estranhos, ao conhecer pessoas importantes, ao comer ou beber em lugares públicos, ao participar de pequenos grupos, ao chegar a festas, ao ser alvo de brincadeiras. Também se caracteriza por medo de dar vexame em certas situações que exigem desempenho, como falar em público, escrever na frente de outros, atuar ou tocar algum instrumento em público, fazer relatório para um grupo, expressar discordância. O indivíduo pode apresentá-la de forma generalizada sofrendo em todas as situações citadas, ou o problema pode se restringir a uma única situação, como se encontrar com o sexo oposto, por exemplo.
Por causa da ansiedade, o indivíduo apresenta também manifestações orgânicas: palpitação, tremedeira, suor, músculos tensos, dor de estômago, boca seca, rubor facial.
A fobia social está, em geral, associada à baixa auto-estima e ao medo de críticas. Inicia, em geral, na adolescência. É comum tanto em homens com em mulheres.
O prognóstico é muito bom. Usa-se uma medicação antidepressiva e realizam-se algumas sessões de psicoterapia interpessoal e cognitivo-comportamental.
Nicole tem certeza não se tratar de fobia social aquilo que apresenta Clézio. E descreve-o com os sintomas de transtorno de personalidade esquizóide: prefere sempre atividades solitárias, tem prazer em poucas atividades, não tem amigos íntimos ou confidentes, mostra-se indiferente a elogios ou críticas dos outros, demonstra frieza nas emoções, não deseja nem gosta de relacionamentos íntimos, não se interessa em participar na vida de sua família.
- Sexo, por exemplo, quase não se interessa. Se eu não insisto... – revela Nicole. – Sua mãe me disse que ele foi assim a vida toda. Às vezes, eu me queixava da frieza dele para ela, que me respondia: “É o jeito dele, nós da família já nos acostumamos”.
O grupo conclui que não é nada vergonhoso Nicole namorar Clézio, até porque ela jamais irá encontrar namorado perfeito.
- Poderá encontrar um que se acha perfeito. Lembram minha paixão pelo Felipe? Julgava-se perfeito, e o que era? – dilucida Larissa.
Ao mesmo tempo, é-lhe dito que Clézio não sentirá o fim do namoro. Não precisa de namorada, não tem essa necessidade. Que se ela terminar, poderá vê-lo de vez em quando. Manter o vínculo, porém sem incomodar Clézio com sua excessiva presença e seus convites para sexo.
- Pimba! Caiu a ficha! Eu não preciso abandoná-lo. Vocês sabem... eu não consigo abandonar ninguém. Minha gata ganhou seis gatinhos e eu não consegui dar nenhum. Sabe, assim...
- Eu quero um gato! Mas um que seja bípede e dirija uma Mercedes novinha! – graceja Bebel.
PERSONALIDADE PARANÓIDE
O garçom explica o que já sei: o suco de uva que me trouxe é integral, não adoçado, sem conservantes. Por ser natural, contém pequenos cristais no fundo do frasco que, contudo, nada alteram sua qualidade.
Diego chega interrompendo, fato incomum em sua habitual educação, quer ser hoje aquele que fala. Esperamos por Anderson e Jackson conversando sobre o México, país que desejo muito conhecer.
Todos reunidos, Diego fala de Rosária:
- É una mujer gostosa na cama, desembaraçada, topa tudo. Eu gosto dela. Se não fosse a questão da bissexualidade, com certeza iria namorá-la.
- Rosária ou os pesos mexicanos do pai? Afinal, você passou a ser um entendedor de pesos – satiriza Jackson.
- Ah! Escrevia aquele e-mail num dos computadores do pai dela quando ele chegou e sentou-se a meu lado. “Conclua, vou aproveitar para aprender português”. Bem quando eu ia contar do bar homossexual... então escrevi aquilo.Depois fiquei me censurando: “Será que ele achou que eu estava atrás do seu dinheiro?”
Rimos.
- O dinheiro do pai dela seria um problema para mim. É muito mais fácil contentar uma namorada da mesma classe social do que uma mais rica. Rosária freqüenta ambientes caríssimos, como os que eu conheci em Londres, como algo natural – exemplifica Diego.
- “Querida, este ambiente não é natural para mim. Pague você” – contra-exemplifica Jackson. - Chega desse machismo de o homem pagar a sua própria despesa num restaurante.
- Eu iria me sentir um desqualificado.
- Uma questão de educação. Infelizmente, reconheço, fomos mal educados por nossas mães – resigna-se Jackson.
- Afinal, Diego, quem é Rosária?
- Professor, Rosária é uma mulher tranqüila e alegre. Gosta de passear, de viajar. Não estuda muito, mas tem gosto pela cultura. Gosta de música clássica e costuma visitar galerias de arte. Não parece apresentar problema nenhum: transtorno de personalidade ou outros quadros que o professor tem nos ensinado. Mais a vocês, porque perdi muitos encontros.
- Em tudo ela é ok. Mas e o bissexualismo? – deprecia Anderson.
- Aliás, notei uma coisa. Ela logo pega como dela também os gostos da pessoa com quem está. Se molda muito, muito fácil.
- Um camaleão – continua a depreciá-la Anderson.
- Casualmente li ontem à noite, por isso recordo da data: já em 1934, Deutsch denominou personalidades “como se” aquelas que variam como um camaleão, de acordo com suas relações. Se namora um intelectual, vira um intelectual; se um religioso, vira um religioso.
Diego retoma a palavra:
- Estou mesmo num dilema. Talvez vocês nem se lembrem da Cristiane, aquela da praia. Voltei a encontrá-la e nada senti. Rosária está longe de ser a mulher perfeita, mas há algo nela que me atrai. Inclusive a sinceridade dela em revelar sua bissexualidade me comoveu. O jeito amistoso de seu pai... Ele aceita sua filha bissexual, só pede, e acho que até é para preservá-la de preconceitos e outras agressões, que revele o lado hetero e esconda o bi. Razoável, não? Minha família não é perfeita. E meu pai, minha irmã e eu toleramos um problema mais difícil que o preconceito por uma filha bissexual. Jackson, você sabia que há algum tempo minha mãe dizia ter certeza de que você estava sempre falando mal dela?
- O quê?! Está louco?! – Jackson fica em pé sobre a cadeira.
- Desculpe, não queria te contar para não te chatear.
- Já me chateou. Sério?
- Sim. Ela é paranóide. A paranóia dela vem e vai. Se a vida anda bem para ela, desconfia pouco, dá para se conviver numa boa. Ela se torna alegre, uma pessoa interessante. Porém, por pouca coisa imagina complôs contra ela. Coisa antiga. Meu pai já entende bem tudo. Há mais de vinte anos já foi ao psiquiatra...
- Mas por que eu?!
- Sei lá. Mas não tem importância. Minha mãe não faz mal a uma mosca. Não se preocupe porque os perseguidores dela nunca são os mesmos. Talvez ela nem lembre que um dia acreditou que você falava da moral sexual dela.
- Alto lá! – interjeciona Jackson.
- A gente ouve, ouve ela falar e pronto. Logo passa. Depois volta. Depois passa.
- É muita coisa pra cima de mim! Garçom! Traz o conhaque dos parentes do professor. Nunca tomei conhaque... sempre tem uma primeira vez.
- Queria chegar no seguinte: se minha família não é perfeita, se minha mãe também não é, minha namorada também não precisa ser. Sei que tenho preconceito em relação ao bissexualismo. Alguém aqui na mesa não o tem? – retoma Diego.
- Que me interessa bissexualismo! Não vou dormir em paz se o professor não me explicar bem a paranóia. A cura da paranóia! – exalta-se Jackson.
Vencendo a contrariedade de Anderson e Diego, que queriam falar mais sobre o bissexualismo, Jackson me convence a explicar o que é transtorno de personalidade paranóide.
Antes julguei importante distinguir esse quadro do transtorno delirante de tipo paranóide: no transtorno de personalidade paranóide, a crença delirante muda, não é persistente.
- No caso, Jackson já deixou de ser o perseguidor.
O transtorno paranóide de personalidade, em geral, aparece cedo na vida. A pessoa suspeita, sem fundamento, que está sendo enganada ou explorada pelos outros. Preocupa-se com dúvidas infundadas sobre a lealdade ou confiabilidade de amigos, vizinhos, colegas. Reluta em confiar informações aos outros porque, na sua maneira de ver, serão maldosamente usadas contra si. Guarda rancores persistentes. Percebe ataques a sua reputação que não são visíveis pelos outros. Por vezes, reage com raiva, contra-ataca, na sua maneira de ver. Pode também suspeitar, sem justificativa, da fidelidade de seu parceiro amoroso.
O ÁLCOOL E AS DROGAS
Abro a porta do bar pensando que, quando se perde a comunicação, se perde tudo. Devo observar o quanto estou me fazendo ouvir pelos guris. Do contrário, de nada adiantará superar algumas sinaleiras e adentrar nesse bar.
- Surpresa, Jorge!
É Mirla que me espera à porta do restaurante. Enquanto fecho e sacudo meu guarda-chuva na entrada do bar, irritado porque alguns pingos caem em minhas calças, ela me conta que os guris também estão ali. Reuniram-se sem sequer me consultar. Concluo que começo a sobrar. A água de meu poço está se esgotando.
O Jackson vem me abraçar. Sei que ele é assim, de abraçar, mas sua atitude de cicerone me faz pensar que a reunião dos dois grupos deve ter sido iniciativa dele.
Ocorre que Mirla e Jackson, que sempre bebem em excesso e exibem-se um ao outro como estudiosos de homens e de mulheres, respectivamente, acabaram mais uma vez se encontrando e, num acesso de boa intenção, resolveram ler sobre o problema das drogas.
- Ficamos a semana inteira aprendendo sobre álcool e drogas e...
- Iniciamos nossa lei seca! – Jackson conclui a fala de Mirla.
Em seguida ao garçom e aos comes e bebes, chega um entregador de flores. Flores diferentes. Cada guria recebe um buquê. Num cartão está especificado: flores marias-sem-vergonha.
- Oh! Marias-sem-vergonha!? Mas que desaforo?!! – reclamam as presenteadas.
- Em nome dos guris, explico – apressa-se Jackson -. Maria-sem-vergonha é apenas o nome dado a esse vegetal. Só.
- Só?!
- Só.
- Jorge, você tem de palpar a cabeça desse guri, alguma coisa você vai encontrar, não é possível! – exclama Larissa.
As risadas inundam o bar e eu lembro a frenologia. Um médico de Viena, Franz Gall, se não me engano, dizia que, palpando o crânio, encontraríamos algumas protuberâncias que corresponderiam a formações no cérebro responsáveis pela forma como esse cérebro funciona, ou seja, poderíamos descrever até a personalidade do indivíduo. Isso lá pelo ano de mil oitocentos e pouco. Na época, era “fácil” descobrir “quem é esse a seu lado”.
Jackson e Mirla descrevem o abuso e a dependência. Alguns dos que se expõem ao uso de determinada droga logo se enquadram no abuso: passam a consumi-la de forma recorrente e não mudam seu comportamento mesmo sofrendo os efeitos prejudiciais. Por exemplo: menor rendimento nos estudos e/ou no trabalho; direção de um veículo com os sentidos prejudicados pela presença da substância no organismo; problemas com a lei; atrito com familiares que reclamam do abuso.
- Há bem pouco tempo, o sujeito pensava como seus familiares e agora entra em choque com eles. Diverge de valores que são os seus valores. Vejam a força que essas substâncias têm sobre nosso cérebro – atesto.
A dependência é um passo à frente, explicam Jackson e Mirla. Nela existem a tolerância e a abstinência. Constata-se o surgimento da tolerância pela necessidade de quantidades progressivamente maiores da substância para adquirir o efeito desejado. A abstinência consiste em sintomas que aparecem no indivíduo quando ele pára ou diminui o uso da substância. Outras características da dependência: o indivíduo consome a droga em maiores quantidades e/ou por um período de tempo maior do que deseja; podem ocorrer tentativas mal-sucedidas para controlar ou reduzir o uso da substância; muito tempo é gasto para conseguir a droga; atividades sociais, recreativas ou mesmo profissionais são abandonadas ou reduzidas em virtude do uso da substância; o uso da substância continua mesmo que o indivíduo saiba que certos problemas físicos ou psicológicos são agravados.
- Deixa eu exemplificar – digo. – Embora o sujeito saiba que sua úlcera piorou pelo uso de álcool, ele não consegue parar de beber. Outro não pára de usar cocaína mesmo sabendo que sua depressão é induzida por ela.
- Professor, tenho humildade suficiente para reconhecer que me enquadro no abuso do álcool – desnuda-se Jackson.
- Humildade?! Você está é se exibindo por não se enquadrar como dependente – escarnece Anderson.
- Pode ser. Mas tenho também a humildade de dizer que estou a um passo da dependência. Vocês todos são testemunhas: afirmo que só após três meses de lei seca vou repensar se voltarei ou não a consumir bebida de álcool.
Todos falam ao mesmo tempo. Alguns duvidam, outros dão força. Mirla diz que deveria fazer o mesmo, mas que, por prezar muito a palavra empenhada, vai pensar com calma.
- Vocês já devem ter observado que eu bebo só de vez em quando e que me imponho a períodos longos de lei seca. Essa é a formula para não caminhar para o abuso e para a dependência. O álcool muda nosso cérebro. É prazer perigoso – afirmo ameaçador.
- Defendo o uso da maconha – comparece ao debate o até então calado Diego – Mesmo sem usá-la, defendo seu uso.
- Não usa? Quem defende é porque está envolvido – intromete-se Nicole.
- Não, eu não uso mesmo. Já experimentei, é claro. Mas tenho amigos e amigas que usam e não vejo mal nisso. Deveria ser legalizada...
- Por que legalizar mais uma droga? Não chega o álcool? A bioquímica de nosso cérebro... Por que perturbá-la ainda mais? – sigo contrariador.
- Será que a maconha não é menos nociva que o álcool? – contra-argumenta Diego.
- Estão falando de algo que entendo – vindo do nada, estaciona ao lado de nossa mesa Pirandello.
- Hoje aceitamos todas as opiniões – recebo-o com simpatia.
- Vejo que o grupo cresceu... E as mulheres são lindas – sorri o ex-ator de teatro enquanto busca em mesa próxima mais uma cadeira e eu aproveito para continuar minha fala.
- Neste bar há álcool por toda a parte. Vamos colocar aqui maconha também. Daqui a alguns anos, se buscará facilitar o uso de que outra droga? Mais outra e mais outra? E a maconha é nociva, sim.
- Jorge, tu é preconceituoso – julga-me Mirla.
- A síndrome amotivacional é muito triste – retruco.
- Deixem eu falar! – intromete-se com firmeza Pirandello. – A dessintonia entre quem é jovem e defende a maconha e quem é velho e a condena se deve ao tempo. O jovem está vendo seus amigos, no início do uso, inteiros, alegres, inteligentes. O velho já viveu o suficiente para vê-los após alguns anos.
- É difícil para os jovens pensar no amanhã. Eu fumei cigarro de nicotina dos dezenove aos vinte e seis anos. Quando comecei, minha mãe me advertiu de que eu iria morrer mais cedo. Retruquei: “Não quero morrer velho”. Só agora vejo que estava enganado: eu quero morrer velho – coloco-me como exemplo.
- Vivi na noite quando jovem e as drogas quase acabaram comigo. Álcool, maconha, cocaína. Só estas. Tenho orgulho de dizer que só me viciei em três drogas – ironiza Pirandello.
- Você não parece acabado – anima-o Bebel.
- Totalmente acabado, é isso que você quis dizer. Estou saindo da cova. Não uso mais nada há três anos. Voltei a freqüentar os bares há bem pouco e com cautela. Marco no calendário: só me permito sair à noite três vezes no mês.
Pirandello se diz um felizardo porque, mesmo tendo perdido a carreira que sonhou, afetos, dinheiro e tantas coisas mais, seu cérebro funciona razoavelmente bem. Conta de um companheiro de juventude que só usava maconha. Não tomava bebida de álcool porque, dizia, era prejudicial. A maconha não. Engano dele. A síndrome amotivacional o atingiu.
- Se estivesse aqui conosco nesta mesa de bar, diria três ou quatro frases curtas e nada mais. E era o mais inteligente de nós. Hoje tudo é lento nele. Seu cérebro parece emperrado. É triste, muito triste.
Leio num recorte de jornal que tiro do bolso a opinião de Ângelo Campana, psiquiatra integrante do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Drogas: “A maconha produz alterações psiquiátricas, é alucinógena, acarreta desmotivação e desligamento da realidade. Pode causar ainda intoxicação, que leva a surtos psicóticos, algo mais comum do que se pensa”.
Aproveitando a paciência do grupo, passo a enumerar algumas coisas que constatei nesses anos todos como psiquiatra.
Nossa saúde mental está diretamente relacionada com os hábitos que criamos.
Precisamos nos habituar a variados prazeres. Na praia, não fico a beber cerveja sob o guarda-sol como muitos o fazem porque, se o fizer, atrapalharei outros prazeres, entre eles, de escrever.
Há prazeres de alta e de baixa qualidade. A cocaína, por exemplo, dá prazer. Mas é de baixíssima qualidade. No outro dia o sujeito não se sente nada bem, em geral a depressão toma conta dele. Sofre muito. Aliás, como me disse alguém: o prazer da cocaína existe apenas no momento dos preparativos para seu uso. Depois, é só sofrimento.
É fato que os prazeres de melhor qualidade demoram mais para serem incorporados. Música clássica, por exemplo, não se passa a gostar na primeira vez em que se ouve. Não aprendi a gostar de ópera, mas, se me esforçar um pouco, insistir até, terei nela mais um prazer.
Melhor é prevenir. De preferência, nunca experimentar uma droga. Mas, se experimentar, parar em seguida, porque depois que se pega o gosto, tem-se de lidar/controlar um desejo pelo resto da vida.
Em qualquer momento da vida podemos nos tornar abusadores ou dependentes de drogas. Conheço alguém que se tornou dependente de cocaína aos quarenta anos de idade. Mas é verdade que na adolescência os riscos são maiores, porque estamos tomados por um sentimento de onipotência, achamos que sabemos tudo, que conosco nada de mal acontece, não visualisamos o amanhã e outras coisas mais.
Aqueles que se tornam viciados em jogo de carta, em jogo de bingo, em qualquer vício, passam necessariamente por um processo de reducionismo. Reduzem seus prazeres a um só.
Insisto: para obtermos uma vida saudável, que valha a pena ser vivida, temos de, através de um processo gradativo, adquirir prazeres de boa qualidade.
Quando já estou perdendo a atenção do grupo, sou salvo por Pirandello:
- Bebel, Diego e quem mais quiser. Vamos agora mesmo sair daqui e visitar meu amigo que só usou maconha na vida.
QUALIDADES HUMANAS
É noite. Não é frio. Caminho alguns passos e entro no local onde ocorre o velório de René. Morte natural, é bom que se registre, nada de suicídio.
Além das gurias, não vejo mais ninguém.
- Ele só tem um filho, que mora muito longe, talvez consiga chegar para a hora do enterro – acaba de chegar com a explicação um dos garçons da pizzaria que René tanto freqüentou.
A conversa das gurias gira em torno das qualidades humanas de Tiagão, sua empatia e senso de justiça.
- Nossa relação acabou se transformando numa amizade. Tiagão e eu concluímos isso juntos, numa boa. Inclusive ele me contou de sua nova paquera e eu também...
- Quem é, Mirla??? – perguntamos em coro sem ganhar resposta.
Mirla alegra-se por ter conseguido um amigo de qualidade:
- Entre tantos e tantas de não tantas qualidades... – intica com as amigas. - E quando as qualidades faltam, sobram os defeitos humanos.
Passamos a numerar as qualidades humanas, a começar pela empatia, pela condição de conseguir se colocar, pela imaginação, no lugar da outra pessoa. Ou seja, com esta qualidade a pessoa consegue mais do que enxergar “além de seu próprio umbigo”. Consegue ver valor, gostar, admirar, querer cuidar do que está fora de si.
- Muitas vezes nossa empatia é seletiva. Tiagão teve empatia por Mirla, mas talvez não tenha tido por Robson – exemplifico.
- Pessoa inteligente e afetiva, não é assim que elogiamos a quem admiramos? – comenta Nicole em forma de pergunta.
- Exato. Pela qualidade da empatia conseguimos ser afetivos uns com os outros e exercitar nossa inteligência interpessoal. Vocês todas são afetivas.
Acrescentamos às qualidades humanas: senso de justiça, senso de dever, autocontrole e capacidade de tolerar os defeitos dos outros. Concluímos que são características que favoreceram a convivência e, como tal, o desenvolvimento da espécie. Se, ao contrário, prevalecessem a incapacidade de se colocar no lugar do outro, a impulsividade e a falta de controle, a falta de senso de justiça e de senso de dever, a intolerância, dificilmente a humanidade teria sobrevivido.
- Podemos e devemos cultivar as boas qualidades. Porém, na base da sorte ou do azar, quando nos damos por “gente”, percebemos se as possuímos ou não. Assim também com nossas amizades. Sortudos aqueles cujos amigos têm bem mais qualidades do que defeitos humanos...
- Mais sorte ainda – interrompe-me Bebel – é ter pai, mãe, irmãos com essas qualidades...
- É mesmo ele? - um homem de casaco amarrotado e chegado não sei de onde aponta para o caixão e pergunta olhando em minha direção - O meu amigo René? É ele o morto? René - vira o rosto para o amigo morto - como pode fazer isso comigo? Você era o único... o único que... Sim, você era o único.
Cala-se. Parece uma estátua. De repente, passa a mão na frente de seu rosto como quem afasta alguma coisa e retira-se com caminhar vacilante.
Olhamo-nos interrogativos.
Na porta da capela mortuária o vento movimenta os cabelos pretos, compridos e mal-alinhados daquele visitante temporâneo que mergulha no escuro da noite.
O vento principia a zunir e, imagino, a vergar a copa dos cipestres. O clima, agora mais apropriado a velório, nos faz calar.
Observo que Larissa usa colar com crucifixo.
Por que mesmo estamos aqui se mal conhecemos René? Mirla deixou recado na pizzaria pedindo que, em vez de nosso encontro, viéssemos, ao velório. E se não viéssemos, não haveria ninguém. O funcionário da funerária depositaria o caixão na sala e certamente teria de ir embora para responder a outros chamados. Um caixão sem ninguém ao lado. Apenas por poucos minutos aquele visitante de cabelos desalinhados. Como pode alguém morrer sem absolutamente ninguém? Ah, o garçom. Mas o garçom, faz tempo, foi embora, deve estar a servir outros clientes, outros renés, que um dia...
As risadas me trazem de volta. Larissa repete-me o que acabara de contar: César Franck lhe dá, antes de cada transa, uma calcinha nova. Não só dá. Dá e come a calcinha.
- São calcinhas comestíveis feitas com folhas de gelatina, encontradas em várias cores. Colocadas sobre pele úmida, aderem ao corpo.
- Jorge, você já comeu uma dessas...? ou duas...? – provoca-me Mirla.
- Vontade não me falta.
- Gurias, o Jorge é um coroa com charme, não?
- Tenho me esforçado, até implante de cabelo fiz. Aliás, foi um erro.
- Erro???
- Ninguém notou. Eu tinha de dizer: “Olhe aqui, fiz um implante!” Percebi que igonoraram meus novos cabelos, da mesma forma que já ignoravam antes minha calvície. Um duro golpe...
Bebel sugere que eu use uma corrente no pescoço.
A vida pula, eufórica, exuberante, entre um grupo de jovens. Com certeza, é este o ganho que tenho ao me encontrar com eles. Há uma troca: minha experiência de vida por sua alegria de viver. Quem lida com suicídio precisa equilibrar a balança. Quando aceitei a proposta ouvida nas areias de Itapema, secreta e intuitivamente, sabia que iria ser beneficiado.
Conversamos sobre René. Quem é René?
- René somos nós amanhã – profetiza, séria, Nicole. – A vida termina. Mas quem quer admitir?
O silêncio se faz. De minha parte medito sobre: que compromisso com a vida devo assumir daqui por diante? Sim, sou daqueles que pensam que a vida é algo muito sério, muito valioso e que é única para passarmos por ela descompromissadamente, assim como quem sai a caminhar de mãos nos bolsos chutando as pedrinhas no chão, se houver pedrinhas no chão.
Ao dar uma última olhada no corpo imóvel antes de sair, meu pensamento gira cento e oitenta graus: a vida não pode ser séria. Só pode ser uma piada, algo em que se investe tanto afeto e que, de repente, acaba.
Encostamos a porta. Do carro, aliviado vejo que deixamos a luz acesa, única companhia ao corpo de René.
INTELIGÊNCIA EMOCIONAL
O aeroporto é pequeno. Antes da entrada do prédio principal há uma praça redonda, com bancos curvos, de onde se vêem ao longe campos e campos e, mais longe ainda, os edifícos da cidade. E o silêncio! Aquele silêncio absoluto. De repente, principia fraco o barulho de uma turbina e meus olhos começam a diagramar o céu. De onde vem? Quando soa forte a turbina de um avião na pista, preparando-se para mais uma partida, eu me levanto. Como já disse, gosto mesmo é das partidas.
Valentine e Rosária completaram cinco dias na nossa cidade visitando Diego e logo estarão aqui no aeroporto. Associo viagem a alegria e nunca a tristeza. Por quê? Ainda criança, meu coração batia mais forte ao imaginar que um dia, quem sabe, poderia entrar em um avião e... viajar.
- Profesor, que honor!! - Rosária e Valentine juntas me saúdam com alegria, como o fizeram nas outras vezes em que nos encontramos, e eu contenho minha tristeza.
Simpatizei com ambas e creio que elas também comigo. O ponto comum foi meu grande desejo de conhecer o México, país que elas realmente amam.
Valentine possui uma inteligência emocional acima da média. Percebe fácil os sentimentos do outro e sabe colocar as palavras na medida e no tom certos. Entendo o quanto Diego está balançando entre seus valores tradicionais heterossexuais e a atração por Rosária e por Valentine. Sim, por Valentine também.
Enquanto aguardamos o vôo das duas, Valentine conta-nos que foi um ato falho de Rosária que a fez perceber que havia reciprocidade em seu amor.
Descuido? Desatenção? Mais que isso, o ato falho revela uma intenção, explica Valentine. Lembra-nos do ano em que o fundador da psicanálise escreveu A psicopatologia da vida cotidiana: 1901. Freud, conta-nos ela, certa vez atraído por uma jovem, cometeu o seguinte ato falho: em vez de agarrar uma cadeira para alcançar a quem chegava, agarrou “as cadeiras” da jovem. E o que fez ele? O que todos faríamos: retirou as mãos o mais rápido que pôde e disfarçou.
O avião levanta vôo. Qual ato falho de Rosária teria feito com que Valentine percebesse a reciprocidade de seu amor por ela? Não a deixei contar porque falei demais.
Silêncio triste o de Diego.
- Diego, você deve estar atraído não só por Rosária, mas por Valentine também.
- É verdade.
- A inteligência de Valentine atrai. Inteligência seduz.
Passados vários dias, os sentimentos ordenados e sobrepujados pelo cotidiano tirano, envio, por e-mail, às gurias e aos guris o seguinte texto técnico:
“Inteligência é a capacidade de aproveitar a sua própria experiência prévia para superar obstáculos, resolver problemas e alcançar objetivos. Podemos dividir a inteligência em áreas. Para memorizar, vamos chamar de as sete inteligências: (1) corporal/esportiva; (2) visual/espacial; (3) lógico/matemática; (4) lingüística; (5) musical; (6) interpessoal; (7) intrapessoal ou intrapsíquica.
Com a inteligência intrapessoal ou intrapsíquica tomamos consciência de nós mesmos, de quem somos. Com a interpessoal, conseguimos perceber quem é este a nosso lado”.
ÍDOLOS VERSUS MODELOS
Estaciono na frente da casa de César Franck. Rua de pouco movimento, arborizada, com muitos cinamomos. Para mim, árvore antiga é cinamomo. Aquele com bolinhas que logo amarelam, mas que, quando ainda verdes e jogadas com bodoques, fazem doer o pavilhão da orelha. Num raciocínio infantil diria: os cinamomos são mais antigos porque são os únicos que não foram plantados por minha avó. Cresci acompanhando-a a enterrar muda de araucária, de pinus, de coqueiro, de tudo, menos cinamomo. Eles já existiam.
Cinamomos têm raízes pequenas. Na minha infância, uma ventania derrubou toda uma fileira deles do nosso terreno por sobre a rua Jacinto Vilanova.
Caminho em direção a um quiosque. Há som de piano e vozes humanas. Passo pelo quiosque. Larissa me recebe sorridente e faceira. Todas as gurias estão presentes. Dos guris, não vejo o Diego. Mais dois ou três que não conheço, certamente parentes ou amigos do César Franck. Pirandello também está ali.
Nossos encontros foram muito bons. Tanto os guris como as gurias apresentam a qualidade mais valiosa: são afetivos e expressam seus afetos.
- “Variações sinfônicas para piano e orquestra”, de César Franck, do legítimo – ri Larissa ao me pôr a par do que está a tocar seu namorado.
- Sou um homem em construção – ouço Jakson dizer.
Parece-me que ele trocou as argolas da orelha. Não eram prateadas as anteriores?
Nicole, que me conta ter dado um tempo no namoro, mudou o tom do cabelo para um ruivo-dourado.
Numa roda de conversa com César Franck, Pirandello, Larissa e Bebel, a capacidade de avaliar “quem é este a seu lado” é enaltecida.
- Não precisamos falar nos extremos como no filme High Crimes, em que Ashley Judd interpreta uma advogada que nada sabia sobre o marido, Jim Caviezel. Tratava-se “apenas” de um criminoso de guerra e duplo homicida – é o dono da casa quem fala.
- Pelo visto, Ashley Judd gosta desse tipo de personagem. Vi outro filme...
Meu celular toca e me impede de continuar a ouvir Bebel. Caminhando em direção ao quiosque, ouço Rose, a lojista, aos prantos:
- Doutor, ele se matou, meu marido se matou.
- Como?!
- Pois é – chora – Eu é que corria risco... Ele se deu um tiro. Um horror!
- Que absurdo!
Quando dou por mim, já ultrapassei o quiosque e estou na calçada, sob um cinamomo. O marido de Rose, deixou um bilhete: “Agora que você está bem, posso partir”.
Rose chora e repete que fora pega de surpresa. O marido nunca falara em depressão, nunca falara em buscar tratamento.
Sento-me junto ao quiosque. O marido de Rose certificara-se não ser dela o bilhete na sala de espera de meu consultório. Por telefone, recordo-me de ele dizer que poderia levar adiante seu projeto...
E meu auto-elogiado sexto sentido?! E as habilidades que teria para transmitir aos psiquiatras mais jovens?!
Mirla canta com sua voz um pouco rouca. Está frio.
Os caminhos que me conduzem do quiosque de volta à festa são de arenito claro, uma trilha de placas grandes, retangulares.
Mirla, junto ao piano, usa um pulôver com losangos vermelhos e pretos. Mirla e Anderson se paqueram.
Por azar, põe azar nisso, entro numa roda em que um daqueles presentes à festa que julgo serem parentes ou amigos do dono da casa conta que a Organização Mundial da Saúde estima em quase um milhão o número de suicídios por ano.
Afasto-me, mas ainda o ouço dizer:
- No último ano, mais pessoas morreram por suicído do que a soma dos mortos em todos os conflitos armados...
Quem será que deixou aquele bilhete na sala de espera?
Mirla e Anderson estão de mãos dadas. Ele retirou o cavanhaque? Talvez, de tão ralo não se possa vê-lo daqui.
Pirandello, Larissa e Bebel conversam:
- Ídolo é alguém que é objeto de veneração, alguém que se adora como se fosse uma divindade - afirma Pirandello.
- Tem a ver com paixão - complementa Bebel. - É necessidade que surge no início da adolescência.
O tema me agrada. Comento que os ídolos são um pouco rebeldes, seja na roupa diferente, seja na letra de suas canções. São vendidos como pessoas normais como nós, mas um pouco diferentes.
- Uma normalidade radical - sugere Bebel.
- Qualquer um pode ser como eles. Hoje entram e saem de cena cada vez mais rapidamente, deixando a mensagem: “Você também poderá ficar famoso” - explica Pirandello.
Larissa quer discutir a diferença entre ídolo e modelo.
- Elvis Presley foi meu ídolo, mas não meu modelo - exemplifico. - Modelos procuramos mesmo na idade adulta. São nortes, indicam caminhos. Os pais, alguns amigos, profissionais bem- sucedidos, pessoas que superam dificuldades, esses são os mais adotados como modelos. Não necessariamente os copiamos. Os modelos nos afirmam uma possibilidade.
- É possível realizar-se como pessoa, é possível superar grandes dificuldades, é possível alcançar sonhos - complementa Pirandello.
Somos interrompidos por César Franck que pede silêncio para que o ouçamos apresentar convidado recém-chegado:
- Reconhecem? Não? Romero Valadares! Aquele aqui de Passo Fundo que filmou um ET para Holiwood. Lembram do Sinais, com Mel Gibson, daquele diretor indiano... como é mesmo seu nome?...
- Night Shyamalan - ajuda-o Pirandello.
Fico intrigado. Será mesmo Romero Valadares?!
César Franck volta ao piano. Sento-me ao seu lado, numa poltrona bem confortável, e me vem a lembrança do corretor. “Ela é velha, ela é gorda, ela gasta nas lojas, ela é muito feia. O que há nela, doutor, que me deixa assim obcecado?” Continuo a não lembrar o que obcecava o corretor.
O piano me faz bem. Muito bem!
Sinto vontade de procurar novos modelos para minha vida. Pessoas que saibam viver com leveza.
César Franck volta-se para mim:
- Esta é demais: “Concerto para a mão esquerda”, de Ravel. A vida é bela! – exclama enquanto seus dedos principiam lépidos e decididos a comandar o teclado.
A vida é mais que bela. A vida é!
EM VEZ DE POSFÁCIO
É bem verdade que as aparências, na maioria das vezes, não enganam. Todavia, só saberemos quem é este ao nosso lado após observarmos pelo menos sua personalidade, seu nível de maturidade, seus princípios morais e éticos, a presença ou não deste ou daquele transtorno mental, suas qualidades, seus defeitos humanos. E tudo vai depender do primeiro passo. Passo ensinado por Confúcio há tanto tempo: “Quando não sabemos algo, o reconhecimento de que não o sabemos é saber”.
Esse saber – o saber de que não se sabe - só terá teto para pousar em nossa mente se abrirmos mão daquela velha onipotência, daquela que insistimos em chamar de “ingenuidade“.