Somatização

Somatização

02/10/2019
Somatização

Transtornos Somatoformes, Síndrome de Münchausem e Simulação

Artigo escrito por: Jorge Alberto Salton
 
INTRODUÇÃO
Estes quadros apresentam em comum a presença de sintomas físicos sem causa orgânica e relacionados com a vida psicológica do paciente. Podem ser compreendidos como dentro de um continuum. Numa ponta encontram-se os Transtornos Somatoformes cujos sintomas são inconscientemente produzidos por uma motivação que também está no inconsciente do paciente. No meio, a Síndrome de Münchausen cujos sintomas são conscientemente produzidos mas por uma motivação inconsciente. Na outra ponta, a Simulação cujos sintomas são conscientemente produzidos por uma motivação também consciente.
 
TRANSTORNOS SOMATOFORMES
Caracterizam-se pela apresentação repetida de sintomas físicos juntamente com a persistente solicitação de investigações médicas, mesmo após repetidos achados negativos e de reasseguramentos pelos médicos de que os sintomas não tem base física.
 
1. Transtorno de Somatização
Caracteriza-se pela presença de múltiplos, recorrentes e, muitas vezes, mutáveis sintomas físicos relacionados a qualquer parte ou sistema do corpo. Em geral, o paciente tem uma longa história de consultas, hospitalizações, investigações e procedimentos médicos infrutíferos.
O curso é crônico e flutuante e usualmente inicia no começo da idade adulta. È muito mais comum em mulheres.
A CID-10 (F45.0) estabelece os seguintes critérios diagnósticos:
a. pelo menos 2 anos de sintomas físicos múltiplos e variáveis para os quais nenhuma explicação adequada foi encontrada; 
b. recusa persistente de aceitar a informação ou o reasseguramento de diversos médicos de que não há explicação física para os sintomas; 
c. certo grau de comprometimento do funcionamento social e familiar atribuível à natureza dos sintomas e ao comportamento resultante. 
Alguns pacientes apresentam queixas múltiplas, variadas e persistentes mas não preenchem todos os critérios. Para esses, a CID-10 criou o diagnóstico Transtorno Somatoforme Indiferenciado (F45.1).
Como diagnóstico diferencial devemos, entre outros, considerar a possibilidade de que os sintomas do paciente sejam oriundos de uma doença física. Também investigar se não se trata de um Transtorno Afetivo: não é incomum a depressão se apresentar mascarada por sintomas físicos.
Obs.: Em todos os relatos de casos a identidade do paciente está preservada mediante o artifício de mudar o seu nome e outros dados pessoais.
Caso n. 15
Alice tem 21 anos, é solteira e trabalha numa instituição bancária. Foi encaminhada a tratamento psiquiátrico por um médico clínico que se preocupou com o fato dela vir há oito anos consultando médicos devido a múltiplas, recorrentes e variáveis queixas somáticas para as quais não se encontravam causas orgânicas: cefaléia intensa, episódios de perda da consciencia, tonturas, fraqueza geral, dores toráxicas, dispnéia, anorexia, náuseas, vômitos, dores abdominais, sensação de plenitude gástrica, constipação alternando-se com diarréia, disúria, dismenorréia, irregularidade menstrual, amenorréia, mastalgia, dores lombares e articulares. Suas queixas sempre foram vagas. Inúmeras vezes se hospitalizou para completar investigação clínica ou mesmo para receber "soro fortificante" (Alguns pacientes acreditam que a hidratação parenteral de solução glicosada ou fisiológica é um poderoso alimento que fortifica e anima).
Conservava consigo o resultado de exames a que se submetera, muitos deles por repetidas vezes, ao longo desses anos: hemograma, hemossedimentação, exame comum de urina, parasitológico de fezes, glicemia, creatinina, amilase sérica, cintilografia de tireóide com captação de iodo em vinte e quatro horas, dosagem de T3, T4 e TSH, prova de látex, proteinograma, proteína C reativa, radiografia de crâneo, eletroencefalografia, radiografia de tórax, eletrocardiograma, eletrocardiograma de esforço, estudo radiológico de esôfago, estômago e duodeno, esofagogastroduodenoscopia, provas de função hepática, estudo radiológico do trânsito intestinal, radiografia de coluna lombossacra, urografia excretora, dosagem de LH, PSH, estradiol e prolactina, ultrassonografia de abdomen total, tomografia cerebral. Todos com resultados negativos. Apendicectomizada, afeiçoou-se a cirurgias. Em certa ocasião, quis ser operada devido ao temor infundado de possuir um cancer gástrico. Mesmo com o reasseguramento médico de que não portava nenhuma patologia orgânica, conservou a sensação de que "devia ser operada".
Nesse envolvimento com a medicina, Alice lembra-se com emoção do falecimento de seu pai, ocorrido há oito anos devido a um cancer gástrico. Quando baixa hospital prefere ficar sozinha, sem acompanhantes ou visitas, para melhor se concentrar nessas recordações. Procura imaginar-se no lugar do pai, doente e a beira da morte como ele. 
Em seu passado, verifica-se que Alice fora muito apegada ao pai. Alice tem consciencia de que ele, tendo apenas duas filhas mulheres, aguardava o nascimento de um menino. Adotou-a como se menino fosse. Era ela sua companheirinha constante. Quando um pouco maior, Alice passou a ajudá-lo no trabalho. Passavam os dias juntos e conversavam longas horas. Ela não se interessava em conviver com as irmãs e com a mãe, era como se existisse somente o pai.
Aos treze anos, após o seu falecimento, teve início o Transtorno de Somatização. Alice evitara ao máximo visitar o pai no hospital e, depois, culpara-se muito por isto. Quando maior, começando aos sábados a sair com amigos, invariavelmente adoecia e sua noite acabava no hospital envolta em lembranças do pai.
Nas sessões de psicoterapia, Alice fazia longos silêncios, referia amnésia a períodos longos de sua vida e, por vezes, sentia dores intensas na cabeça e no estômago, seguidas de náuseas. Levantava-se e caminhava pela sala ou ia a janela tomar ar. Porém, voltava a lembrar de alguma cena com o pai. Particularmente agradável era aquela em que ele a admirava colhendo flores no jardim. Alice não podia negar o caráter romântico dessa cena. Inclusive passou a evitar a mãe pelo temor de ser inquirida quanto ao assunto que conversava nas sessões. Seria obrigada a mentir, pois não conseguiria contar o quanto falava no pai. Achava que a mãe ficaria irritada ao saber. Ou seja, atribuía a mãe seu próprio rechaço frente a intensidade da situação edípica..
Alice fez com o pai uma ligação de tipo simbiótico. Ele a quis como preferida e buscou nela a concretização de suas aspirações de ter um filho homem. Alice procurou corresponder a esses desejos, adotando as características de menino. Ela parecia um rapaz. Certa vez uma tia , irmã do pai, levou um grande susto ao vê-la: parecia estar vendo a reencarnação do irmão.
As tentativas de se afastar do pai provocavam em Alice intensos sentimentos de culpa. Já fora assim quando no início da adolescência esteve prestes a estudar em outra cidade. O remorso foi bem maior ao se afastar dele quando da doença que o matou. Sempre que se envolve afetivamente com algum rapaz, surgem problemas. Acaba retornando a ele através dos sintomas físicos e das hospitalizações. Pune-se identificando-se com os aspectos doentes do pai. Envolve-se com a medicina buscando, não propriamente a elucidação diagnóstica e a orientação terapeutica, mas, principalmente, a expiação desses sentimentos intoleráveis de culpa.
 
2. Transtorno Hipocondríaco
Caracteriza-se pela preocupação e pela crença que o paciente tem de possuir uma ou mais doença física grave. Sensações corporais normais são interpretadas como sinal de enfermidade. Alguns preocupam-se com aspectos de sua aparência. Insistem terem, por exemplo, um nariz ou uma orelha ou outra parte do organismo disforme.
Seu curso é crônico e flutuante. Raramente aparece pela primeira vez após a idade de 50 anos. Ocorre na mesma freqüência em homens e mulheres. Incidência/prevalência: 10% de todos os pacientes que consultam médicos.
A CID 10 (F45.2) estabeleceu os seguintes critérios diagnósticos:
a. crença persistente na presença de pelo menos uma doença física séria casuando o sintoma ou sintomas apresentados, ainda que investigações e exames repetidos não tenham identificado qualquer explicação física adequada, ou uma preocupação persistente com uma suposta deformidade ou desfiguramento (dismorfofobia); 
b. recusa persistente de aceitar a informação ou reasseguramento de vários médicos diferentes de que não há nenhuma doença ou anormalidade física causando os sintomas. 
Como diagnóstico diferencial devemos, entre outros, considerar possibilidade de que os sintomas do paciente sejam oriundos de uma doença física. Também investigar se não se trata de um Transtorno Afetivo (depressão) ou de um quadro de Fobia ou de Transtorno Delirante Persistente.
Caso n. 27
Francisco tem 40 anos, é casado, pai de três filhos adolescentes, comerciante, divide uma loja com mais dois sócios, católico praticante.
Apresentou-se a consulta psiquiátrica encaminhado por médico urologista. Trouxe junto uma mala de viagem abarrotada de caixas de medicamentos e de resultado de exames complementares.
Contou que há cerca de dez anos, com freqüência, passa a crer que é portador de uma grave doença no sitema urinário. Nestas ocasiões, sente uma "espécie" de ardência ao urinar. Por muito tempo acreditou ser portador de sífilis. Últimamente teme apresentar AIDS. Todos os exames sempre deram negativos e por mais que os médicos reassegurem que não há nenhuma doença em seu organismo continua com essa crença.
Acredita que tudo tenha começado quando há cerca de dez anos, induzido por amigos, freqüentou um cabaré. Católico praticante, cumpria rigorosamente os preceitos de sua religião. Nunca fora de ir a bares ou de ter casos com mulheres. Pensa ter sido o álcool que o fez ceder a pressão dos amigos. Por inisistência de uma mulher, acabou mantendo relação sexual, na qual teve ereção apenas parcial. Já no dia seguinte, ao acordar, percebeu sensações estranhas no pênis. Desde então, passou a ter a certeza de que é portador de uma doença grave ainda não diagnosticada pelos médicos.
Francisco não vê relação nenhuma entre este seu temos e sua severa moral religiosa. Não percebe ligação com culpa ou outro sentimento negativo. Inclusive, diz nada ter a ver com o rompimento da relação de confiança com a esposa. Pois, contou a ela e foi perdoado. Mesmo assim, o problema continua. Afirma que o quadro é puramente orgânico. Não vê lógica nenhuma em consultar um psiquiatra.
Por outro lado, percebe que passa períodos sem apresentar o Transtorno e que este tende a retornar em momentos de estresse ou por ocasião da vivência de algum sentimento de perda.
Nega-se a examinar sua vida interior, ou seja, a uma abordagem intrapsíca.. Porém, aceita uma abordagem psicoterápica focalizada em suas dificuldades interpessoais momentaneas. E, inclusive, beneficia-se com ela. Melhorando suas relações atuais com familiares, com amigos e com o seus sócios, alivia-se dos sintomas hipocondríacos.
 
3. Disfunção Autonômica Somatoforme
As queixas do paciente parecem ser decorrentes de um transtorno físico de um órgão ou um sistema que está ampla ou completamente sob inervação e controle autonômicos. As queixas podem ser agrupadas em: 1. Sinais objetivos de excitaçãop autonômica, tais como palpitações, sudorese, rubor e tremor; 2. Sintomas subjetivos e inespecíficos, tais como sensações de dores fugazes, sensação de estar inchado ou distendido.Para a CID-10 (F45.3) o diagnóstico definitivo requer todos os critérios seguintes:
a. sintomas de excitação autonômica, tais como palpitações, sudorese, tremor, rubor, os quais são persistentes e incômodos; 
b. sintomas subjetivos adicionais relacionados a um órgão ou sistema específico; 
c. preocupação e angústia quanto à possibilidade de um transtorno sério (mas freqüentemente inespecífico) do órgão ou sistema citado, as quais não respondem a explicações e tranqüilização repetidas pelos médicos.
d. nenhuma evidência de uma perturbação significativa de estrutura ou função do sistema ou órgão citado. 
A Disfunção Autônomica Somatoforme, na CID 10, é subdividida em cinco tipos. 
Coração e Sistema Cardiovascular: neursose cardíaca, síndrome de da Costa, astenia neurocirculatória.
Trato Gastrointestinal Superior: neurose gástrica, aerofagia, soluço, dispepsia e pilorospasmo psicogênico.
Trato Gastrointestinal Inferior: flatulência, síndrome do colon irritável, síndrome da diarréia gasosa psicogênica.
Sistema Respiratório: tosse e hiperventilação psicogênica.
Sistema Geniturinário: freqüência aumentada de micção e disúria psicogênica.
O diagnóstico diferencial deve ser feito com doenças orgânicas. Também com o Transtorno de Ansiedade Generalizada e com o Transtorno de Pânico.
Caso n. 16. 
Artur tem 20 anos, é solteiro, estuda contabilidade e trabalha como escriturário em uma firma. Apresenta como queixas: sudorese, rubor e aumento da freqüência da micção. Já se submeteu a inúmeras investigações clínicas e laboratoriais e nenhuma alteração orgânica foi encontrada em seu organismo.
Os sintomas apareceram pela primeira vez há dois anos quando saiu da casa de seus pais e foi prestar o serviço militar em outra cidade. Quando se percebia alvo da brincadeira dos colegas, suava, ruborizava e sentia vontade de urinar. O mesmo se passa no local onde trabalha atualmente. Ou seja, sempre que se percebe como o centro das atenções, os mesmos sintomas retornam.
Há uma relação da Disfunção com dificuldades de baixa auto-estima. Teme qualquer opinião que seja negativa a seu respeito. Dá aos outros a função de seu "espelho". Para ver como está, basta observar com que olhos os outros o enxergam.
 
4. Transtorno Doloroso Somatoforme 
A dor é o sintoma predominante e ocorre em associação a conflito emocional ou a problemas psicossociais que são suficientes para permitir a conclusão de que eles são as principais influências causais. A CID 10 (F45.4) tem como critério diagnóstico a presença de dor persistente, grave e angustiante, a qual não pode ser plenamente explicada por um processo fisiológico ou por um transtorno físico.
Uma dor de presumida origem psicogênica ocorrendo durante o curso de um transtorno depressivo ou esquizofrenia não deve ser incluída aqui. Dor decorrente de mecanismos psicofisiológicos conhecidos ou inferidos, tais como dor por tensão muscular ou enxaqueca, mas que ainda acredita-se terem uma causa psicogênica, deve ser codificada na CID 10 no código F54 (Fatores Psicológicos ou de Comportamento Associados a Transtornos ou Doenças Classificadas em Outros Locais).
O diagnóstico diferencial principal é com dor de causa orgânica. Lembrando-se sempre que muitas vezes é demorado para se descobrir o diagnóstico físico definitivo.
Caso n. 32
Olavo tem 40 anos, é casado, agricultor e pai de cinco filhos. Há três anos queixa-se de dor abdominal, às vezes localizada no epigástrio, outras vezes parece oriunda do hipocondrio direito.
Exaustivamente investigado nenhuma causa orgânica foi encontrada. O médico que o atendia passou a insistir que ele procurasse um psiquiatra por julgar que a dor tinha relação com a morte de seu pai.
Olavo, mesmo reconhecendo haver uma relação cronológica entre a data de falecimento do pai e o início de seu quadro, insistia em que seu problema era puramente orgânico. Consultou inúmeros médicos em diversas cidades, sempre com achados negativos.
Curiosamente, antes de vir ao psiquiatra, baixou para ser investigado exatamente nos três hospitais que seu pai esteve por ocasião do atendimento do cancer hepático que o vitimou. Depois, visitou o tumulo do pai, falou com ele em pensamento e só quando magicamente acreditou ouvir dele a aprovação para consultar o psiquiatra é que decidiu fazê-lo. Suas primeiras palavras foram: "não achava direito vir aqui falar de uma pessoa que já morreu".
 
5. Outros Transtornos Somatoformes
A CID 10 (F45.8) reserva este código para quaisquer outros transtornos de sensação não decorrentes de transtornos físicos que estejam intimamente associados temporalmente a eventos ou problemas estressantes ou que resultem em aumento significativo da atenção ao paciente, quer pessoal, quer médica, devem também ser classificados aqui. Sensações de inchaço, de movimentos sobre a pele e parestesias (formigamentos e/ou dormências) são exemplos comuns. Também são incluídos aqui: 
a. globus histericus (sensação de um caroço na garganta e/ou de uma bola que sobe e desce no esôfago) e outras formas de disfagias; 
b. torcicolo psicogênico e outros transtornos de movimentação espasmódicos (excluindo a Síndrome de Gilles de la Tourette); 
c. prurido psicogênico; 
d. dismenorréia psicogênica; 
e. ranger os dentes. 
 
Tratamento
Por períodos breves pode se fazer uso de ansiolíticos e hipnóticos para aliviar sintomas de ansiedade, tensão e insônia que acompanhem esses quadros. Também pode ser empregados antidepressivos. Além disso, é indicado psicoterapia.. 
Abordagens intrapsíquicas, como a da psicoterapia de orientação analítica é indicada em alguns casos e pode auxiliar alguns pacientes que apresentem capacidade de insight.
Porém, para muitos desses pacientes a psicoterapia de orientação analítica não é indicada. É comum ao paciente somatoforme a maciça negação de seus conflitos afetivos. Muitos denominações foram empregadas para designar esse fenômeno: pensamento operativo, pensamento concreto, incapacidade de insight, alexitimia (do grego: a=falta; lexia=palavra; timia=afeto). Essa última significa: falta de palavras para designar os afetos. Considera-se primária a alexitimia causada por déficit genético ou neurofisiológico e secundária a alexitimia determinada por fatores psicodinâmicos, sócio-culturais ou relacionadas a problemas do desenvolvimento da personalidade. A secundária permite que, após um periodo de sensibilização prévia, alguns desses pacientes possam a aprender a dar nome a seus afetos e a ventilá-los.
A psicoterapia interpessoal vem sendo bastante empregada. A medida em que o paciente consegue melhorias em seus relacionamentos com familiares, amigos, colegas de trabalho e no relacionamento que faz com seus interesses de um modo geral, ele apresenta melhora na sintomatologia somatoforme.
A psicoterapi cognitiva- comportamental também mostra-se útil em certos casos ajudando o paciente a superar falsas crenças sobre doenças.
Muitos pacientes nunca experimentam qualquer tipo de tratamento psicoterápico. Permanecem ligados a seus clínicos, em especial aqueles que conseguem ser continentes de suas ansiedades e suportam, sem sofrimento em suas auto-estimas, conviveram por anos e anos com pacientes crônicos. O simples fato de os acompanhar é de grande valia: o paciente deixa de sofrer sozinho. A forma positiva de uma boa relação médico-paciente é visível no alívio dos sintomas desses pacientes.
 
SÍNDROME DE MÜNCHAUSEN
 
(Leia artigo em MUITOS TEXTOS sobre Sindrome de Munchausen)
Determinados pacientes apresentam uma forma singular de conduta autodestrutiva: simulam doenças físicas buscando atrair sobre si condutas médicas agressivas.
Na CID-10 (F68) esta síndrome está colocada dentro do ítem Outros Transtornos de Personalidade e de Comportamento em Adultos. Mais específicamente (F68.1): Produção Intencional ou Invenção de Sintomas ou Incapacidades Físicas ou Psicológicas (Transtorno Factício).
Diferentes denominações foram dadas a essa síndrome: nômades de hospital, "ratos" de hospital, pacientes peregrinos. Porém, aquela que mais se popularizou no meio médico foi a retirada das histórias do Barão de Münchausen. Hieronymus Karl Friedrich von Münchausen (1720-1797), alemão, tornou-se muito conhecido pelas mentiras humorísticas (e agressivas) que contava de bar e bar. Muitos autores escreveram a respeito, entre estes, Rudolf Erich Raspe. Uma situação em que a literatura veio em auxílio à psiquiatria. Em 1951, Asher relata três casos no Lancet e tem a felicidade de propor a denominação Münchausen. Desde então, os médicos voltaram sua atenção para esse quadro.
Mais comum em homens do que em mulheres. Normalmente inicia na vida adulta. O curso é crônico e prognóstico é pobre. Estima-se que de 5 a 10% de todas as internações hospitalares se devem a esse quadro.
1. Diagnóstico 
Na CID 10 o diagnóstico se baseia na existência do ato de inventar sintomas repetida e constantemente na ausência de um transtorno, doença ou incapacidade física ou mental confirmada.
O paciente é muito convincente na simulação dos sintomas e os produz voluntariamente tentando, assim, permanecer envolvido em atendimentos médicos. Porém, ele não tem consciência do porque que precisa mentir sobre sua saúde e permanecer constantemente as voltas com hospitais e profissionais da saúde. 
Existem casos em que o paciente simula sintomas psiquiátricos, como alucinações, idéias delirantes ou sintomas da linha depressiva, com supostas idéias de suicídio. No passado, esses quadros eram mais descritos entre prisioneiros e denominados de Síndrome de Ganser. Na CID 10 a Síndrome de Ganser faz parte dos Transtornos Dissociativos (ou Conversivos) (F44)
 
2. Compreensão do fenômeno
Os sucessivos relatos de casos revelam que, em pelo menos uma parte desses pacientes, houve a vivência de situações de rechaço e ou abandono parental na infância. Repetem, especialmente com os médicos, essa relação primitiva insatisfatória. Induzem aos médicos para que assumam o papel da figura parental má que conservam dentro de si. Pela simulação voluntária dos sintomas, o paciente pode, ao contrario de antes, assumir o controle da relação. Projetando no médico sua própria agressão, despertada pela incapacidade de tolerar a vivência primitiva de rechaço e ou abandono, o paciente estabelece uma relação sadomasoquista. Não leva mais dentro de si o objeto parental perseguidor, este agora está fora, depositado no médico e sob controle.
O problema do masoquismo observado nestes pacientes inicialmente foi compreendido como masoquismo moral: o indivíduo sente que atacou a alguém, vive rechaçado por seu superego e, para voltar a obter os favores dele, realiza o ato expiatório masoquista.
Ultimamente, enfatiza-se a presença do chamado masoquismo narcisista: o paciente trata de alcançar o sentimento de ser melhor que os outros. Sente-se superior no sofrimento, renunciando as satisfações, sendo capaz de suportar tudo.
Por que o médico é o escolhido para o papel de sócio sádico? As respostas são insuficientes: algum contato prévio, devido a necessidade de tratar outras enfermidades, permitiu, em alguns casos, ao paciente encontrar na figura deste profissional o "partner" ideal. 
Por que muitos médicos aceitam esse papel? Não existem pesquisas que respondam de forma convincente está questão. 
Outro questão preocupante é aquela em que a mãe se utiliza do nenê para permanecer envolvida em atendimentos médicos: síndrome de Münchausen por procuração. Confunde o médico: coloca gotas de sangue na urina do nenê antes de levá-la a ser examinada no laboratório.
 
Caso n. 66
Teresa, 34 anos, solteira, formação universitária, desempregada.
Encaminhada ao psiquiatra por um cirurgião que percebeu a insistência doentia da paciente para que lhe fosse indicado um procedimento cirúrgico.
Teresa conta com orgulho haver se submetido há setenta anestesias gerais para procedimentos cirúrgicos grandes ou pequenos. Relata o prazer que sentia ao demonstrar a determinado médico sua coragem ao resistir a dor quando o mesmo promovia a drenajem de um absesso purulento. Ela desenvolvia abcessos em seu corpo injetando-se, às escondidas, meperidina por via intramuscular. Ela sofria osteomielite no ilíaco, com abcessos perenes na coxa direita. Também apresentava paresia dos menbros inferiores, como conseqüência a lesão na coluna vertebral adquirida aos 21 anos quando tentou o "suicídio" atirando sobre a região abdominal. A bala, após perfurar o fígado, alojou-se na coluna lombar. Nessa ocasião submeteu-se a primeira cirurgia. A partir de então, a seqüência não teve mais fim. Permanecia mais tempo no hospital que em casa, na maioria das vezes por sintomas por ela mesma provocados tais como os abcessos. Desenvolvia escaras de decúbito, havendo feito inúmeros inxertos. Chegou a arrancar a pele inxertada as escondidas, recolocando-a posteriormente em uma tentativa de enganar a equipe médica. Em outras ocasiões fazia quadro de retenção urinária sem motivo aparente, necessitando da aplicação de sonda de alívio. Em uma dessas tantas vezes, desenvolveu litíase vesicular, submetendo-se a cirurgia correspondente. Internou-se em vários hospitais, inclusive em outras cidades. Em uma dessas ocasiões, conseguiu que um médico a operasse alegando que o osso ilíaco a machucava ao deitar-se de lado. Nessa cirúrgia foi removida uma porção do ilíaco e, como conseqüência, ocorreu a desatirculação óssea do membro inferior direito. Tal procedimento foi responsável pelo desenvolvimento da oesteomielite. Em outra ocasião, se queixou da última costela, sendo submetida a uma cirúrgia para retirá-la parcialmente, havendo como conseqüência uma pleurisia. Certa vez, insitiu em seccionar o tendão de Aquiles para que seu pé adquirisse, segundo ela, uma posição mais adequada para calçar o sapato, tendo em vista a paresia do membro.
Era visível o ar de superioridade ao relatar a valentia com que havia enfrentado tudo isso. A osteomielite progrediu e a paciente começou a apresentar infecções diversas. O membro inferior direito, desarticulado, constituia-se num foco grave e permanente. O estado se agravou, optando-se pela medida extrema da amputação. A paciente enfrentou com exagerada satisfação tal procedimento. Mais adiante, veio a falecer em quadro septicêmico.
3. Tratamento 
a. Diagnóstico precoce: o curso e o prognóstico serão mais satisfatórios se o transtorno é reconhecido em seu começo; haverá possibilidade de se proteger o paciente dos efeitos iatrogênicos de condutas médicas desnecessárias; a propósito, no conto O corpo do sr. Olmedo, o escritor e cirurgião uruguaio Juvenal Botto, descreve literariamente a evolução trágica de um personagem que acaba sendo submetido a uma hemicorporectomia; alguns médicos chegaram a propor medidas desesperadas, como a de que se tatuasse no abdomem do paciente o nome da síndrome, para que, quando ele fosse em busca de outro médico ou hospital, os colegas percebessem de imediato do que se tratava. 
b. Contratransferência: a equipe de atendimento deve estar prevenida contra o surgimento de sentimentos hostis dirigidos ao paciente; o paciente procura provocar a ira de quem lhe atende; essa síndrome só se estabelece a medida em que o médico entra em conivência com a parte doente do paciente e aceita a identificação projetiva proposta por ele. 
c. Autodestruição: conscientizar o paciente, mesmo que só intelectualmente, e a sua família da tendência dele de buscar se destruir através da busca de procedimentos médicos desnecessários. 
d. Equipe de atendimento única e permanente: um médico clínico, um psiquiatra e um enfermeiro, devem associar-se nos cuidados do paciente; na eventualidade da necessidade da participação de outro especialista ou outro técnico da área da saúde, este deve ser convocado pela equipe que o informará a respeito da tendência autodestrutiva do paciente. 
e. Psicoterapia: deve ser aplicada, de preferência pelo psiquiatra da equipe de atendimento; a técnica vai se adaptar ao paciente; ou dirigida ao insight buscando a compreensão de seus conflitos intrapsíquicos ou voltada para as relações interpessoais do paciente, buscando melhorá-las e, em conseqüência, influindo positivamente na evolução da vida do paciente; em geral, ao longo do atendimento, em momentos, se emprega uma técnica, em outros, a outra técnica. 
 
SIMULAÇÃO
Consiste na produção voluntária de sintomas devido não a uma motivação inconsciente mas a um objetivo externo definido. 
Os motivos externos mais comuns para simulação incluem evasão de processos criminais, obtenção de medicamentos controlados, evitação de recrutamento militar ou de tarefas militares perigosas e tentativas de obter auxílio-doença. A CID 10 codifica esses quadros como Z76.5. O diagnóstico é difícil de ser feito. Para tanto, cabe observar:
a. A anamnese e o exame físico não combinam com as queixas; 
b. Os sintomas são vagos e não combinam com a sintomalogia de uma doença específica; 
c. As queixas são excessivas e dramáticas; 
d. O paciente não coopera com a investigação médica; 
e. O paciente reluta em aceitar um prognóstico favorável; 
f. Os sinais e o sintomas paredem ser autoafligidos; 
g. O paciente tem história de recorrentes acidentes ou lesões; 
h. O resultado de investigação laboratorial despertam a suspeita no médico de que a amostra colhida tenha sido alterada pelo paciente; 
i. O paciente vai ter algum ganho externo caso se confirme a presença de uma doença; 
j. O paciente apresenta uma baixa auto-estima e pobre adaptação no meio social e profissional; 
k. O paciente apresenta transtorno de personalidade anti-social. 
O médico deve cuidar para não desenvolver sentimentos contratransferências hostis em relação ao paciente. Entender que não é seu dever "desmascarar" um simulador. Também é importante compreender que em condições adequadas de vida, dificilmente alguém se utiliza da simulação. Ou seja, algo de problemático se passa na vida desta pessoa que a leva a recorrer a esse expediente. Esta é a questão a se tentar abordar com o paciente.
 

Enviando