A entrevista médica

A entrevista médica

25/09/2019
A entrevista médica

“Existirá algo mais agradável do que ter alguém com quem falar de tudo como se estivéssemos falando conosco mesmos?” Cícero.

 O sucesso da entrevista depende, em primeiro lugar, da pessoa do médico. Em que condições ele está para realizar este encontro? Dormiu bem? Está descansado? Seus próprios problemas e anseios pessoais estão ocupando indevidamente sua mente? Sente-se motivado em seu trabalho?
 Em segundo lugar, há que se verificar o tempo disponível para a entrevista, tanto no que se refere a quantidade como a qualidade. Como regra, trabalhar de forma apressada não dá bom resultado.
Por qualidade nos referimos ao tipo de atenção que o médico dá ao paciente. O médico pode se mostrar impaciente, olhar o relógio, atender seu celular a toda a hora, permanecer de pé junto ao leito do paciente. Já se realizaram pesquisas que comprovam a importância da qualidade do tempo. Por exemplo: um médico permanecia dez minutos junto ao leito dos pacientes e outro quinze minutos. Porém, o primeiro puxava uma cadeira e sentava-se de forma bem relaxada. Falava com calma, escutava sem interromper. O segundo, permanecia em pé, olhava o relógio, falava de forma rápida e às vezes interrompia a fala do paciente. Perguntados os pacientes respondiam que o médico que permanecia mais tempo junto a eles era o primeiro que, em termos de relógio, em verdade permanecia menos tempo.
O local da entrevista também é de suma importância. É indispensável que haja privacidade e silêncio. Caso o médico esteja acompanhado de um auxiliar, deve perguntar para o paciente se prefere ser entrevistado a sós ou não e respeitar sua vontade.
 A seguir veremos duas formas de se fazer entrevista. A paciente é a mesma, uma mulher casada de 38 anos, bem falante, de expressão triste no rosto.
 Dr. Zeus – Bom dia senhora Dora. Do que sofre a senhora?
 Dora – Bom dia, doutor. Sofro de dores nas costas.
 Dr. Zeus – Em que parte das costas.
 Dora – Bem aqui – coloca a mão direita nas costas por entre as omoplatas.
 Dr. Zeus – Que tipo de dor a senhora sente? É dor permanente? Vai e volta? É tipo pontada? Um peso?
 Dora – É uma dor quase que permanente. É uma dor tipo daqueles que a gente fica sentindo após levar uma batida, uma queda... Mas não houve nada comigo: não caí, nem nada.
 Dr. Zeus – Quanto a intensidade, a dor é forte, média ou fraca?
 Dora – Varia de fraca para média.
 Dr. Zeus – Quando ela começou?
 Dora – Creio que há três meses.
 Dr. Zeus – A senhora já sentira essa dor antes?
 Dora – Creio que sim, numa ou noutra ocasião. Mas nunca com a intensidade e a duração de agora.
 Dr. Zeus – Está bem, dona Dora. Agora eu vou examinar as suas costas e vou solicitar os exames.
 Ao final, o médico disse a paciente que seu problema era provavelmente devido a dores musculares. E solicitou que fizesse determinados exames.
Dr. Bento – Bom dia. É Dora seu nome não é? Coma vai a senhora?
 Dora – Dr. Bento eu não tenho andado muito bem. Tenho dores nas costas.
 Dr. Bento – Dores nas costas? A senhora mora aqui nesta cidade?
 Dora – Sim. Moro com meu marido. Só eu e ele. Nós não temos filhos.
 Dr. Bento – Não tem filhos?
 Dora – No início até queríamos, depois deixamos de falar no assunto. Somos casados há muito tempo, há uns quatorze anos.
 Dr. Bento – Quatorze anos lhe parece muito tempo? – pergunta ao perceber as feições tristes da paciente.
 Dora – Quando não se é feliz no casamento...
 Dr. Bento – Não é feliz?
 Dora – Há muito que os afetos de meu marido tomaram outra direção...
 Dr. Bento – E os seus dona Dora?
 Dora – Bem... estão parados, doutor. Parados. Além das dores nas costas, este é outro problema antigo que eu venho levando... Mas esse é mais difícil de resolver que o da dor nas costas.
 Dr. Bento – A senhora está me relatando dois problemas. As dores nas costas e o casamento. A senhora enfrenta ainda mais algum problema.
 Dora – Doutor, eu tenho uma bolinha aqui perto do osso da garganta.
 Dr. Bento – Desde quando a senhora notou essa bolinha?
 Dora – Um mês, talvez. Mas não dói. Nem ia lhe falar nela.
O médico faz mais algumas perguntas a paciente. Lembra-se do ASMOCPLIAC e, se suspeita de alteração em alguma das funções mentais, fala a respeito com a paciente. Depois, parte para o exame físico.
Finalmente, coloca para a paciente suas impressões iniciais de que ela enfrentava os seguintes problemas: dores musculares, ligeira hipertrofia da glândula tireóide, dificuldades no casamento e feições de quem não andava feliz, de quem estava um pouco deprimida. E, a partir, daí passa a conversar com ela sobre como iniciar o tratamento destes problemas, se assim ela o desejar.
 Na primeira entrevista, chamada de DIRIGIDA, observamos as seguintes características: 1. O médico exerce o comando; 2. É ele quem dirige o encontro para o sentido que ele julga adequado; 3. Realiza um interrogatório; 4. Concentra-se na elucidação dos sintomas apresentados pela paciente.
 Na segunda entrevista, NÃO-DIRIGIDA, ENTREVISTA COLABORADORA, observamos: 1. O médico não comanda o encontro; 2. O sentido, a direção, o rumo que a entrevista toma se baseia naquilo que a paciente vem revelando no encontro; 3. O médico procura dar abertura para a paciente falar livremente sobre sua vida, dar-se a conhecer; 4. Concentra-se na pessoa da paciente como um todo e não só na elucidação dos sintomas apresentados.

 A entrevista dirigida constata apenas a presença das dores musculares. A entrevista colaboradora revela a presença de mais três situações de sofrimento. E, inclusive, deixa margem para pensarmos que, talvez as dores nas costas tenham origem ou pelo menos sejam influenciadas pelos outros problemas. Mais ainda: outras questões poderão aparecer. Por exemplo: a paciente está deprimida porque os afetos do marido se voltaram para outra direção ou por ela ser cronicamente deprimida e infeliz seu marido foi buscar afeto em outra direção?
 Muitas vezes se conjugam estes dois tipos de entrevista. Primeiro a não dirigida para que o paciente coloque-se por inteiro como pessoa no encontro com o médico e, depois, pode-se esclarecer melhor os sintomas através de uma abordagem dirigida.
 Como regra o médico deve preferir começar com a entrevista colaboradora, há situações, porém, em que isto não será adequado. Uma delas é a emergência, quando a queixa apresentada impõe tratamento urgente. Por exemplo: o paciente chega na emergência por ter ingerido veneno. Impõe-se primeiro realizar uma lavagem gástrica e outros procedimentos procedentes ao caso. Só bem a posterior vamos conversar com o paciente de forma ampla sobre sua pessoa.  Outra situação que requer a abordagem dirigida é a presença de um sintoma isolado como, por exemplo, dor na coxa ao praticar futebol.
 Neste encontro entre o médico e seu paciente surgem sentimentos em ambos. Sentimentos despertados no paciente: transferência. Sentimentos despertados no médico: contratransferência. 
Transferência é o processo pelo qual o paciente, automática e inconscientemente, desloca para o médico expectativas, sentimentos e atitudes que se originam de relacionamentos com figuras significativas de sua vida de relações. Na mente inconsciente do paciente, as imagens psíquicas de seu médico se conectam com outras provenientes de suas vivências anteriores, sobretudo das infantis. Para o doente, o médico pode ser convertido inconscientemente em uma nova edição de seus pais da época de sua infância ou de outras pessoas que foram importantes no seu desenvolvimento.
Este fenômeno encontra sua contrapartida nos diversos sentimentos que o médico vê despertados em si mesmo ao entrar em contato com pacientes: a contratransferência. Algum pormenor ou traço do paciente pode inconscientemente relembrar o médico de uma pessoa anteriormente importante e mobilizar nele sentimentos e modos de relacionar-se associados a esse primitivo relacionamento. O médico pode achar certo paciente particularmente irritante, sem uma causa clara para tanto. Outro pode parecer-lhe eroticamente atraente. Outro, pode evocar no médico uma piedade especial e conduzi-lo a uma identificação muito forte com o sofrimento dele.
Os sentimentos e a maneira de relacionar-se baseados na contratransferência são irrealistas do ponto de vista profissional. Trabalhar com base neles, tende a ter efeitos adversos sobre o relacionamento médico-paciente e pode conduzir a comportamento não profissional com o paciente. As reações contratransferências podem limitar-se a certos pacientes apenas ou a uma categoria de pacientes que pode representar um certo grupo etário, sexo, tipo de personalidade ou enfermidade. Dessa maneira, o médico pode repetidamente encontrar dificuldades emocionais em seu relacionamento com membros do grupo de pacientes ao qual é “hipersensitivo”, sem que dificuldades semelhantes surjam em outros grupos.
É vantajoso para o médico estar cônscio dos sentimentos que diferentes pacientes nele evocam. Deve perguntar-se de tempos em tempos, se experimenta problemas especiais com certos pacientes. Por acaso se sente irritado ou ansioso quando trabalha com pacientes exigentes? Por que perdeu a paciência com aquele paciente? Por que prefereria não atender a senhora Y?
Sentimentos e fantasias não são perigosos, atos podem ser. A melhor garantia de que o médico não agirá mal na relação com seu paciente é tomar sempre consciência dos sentimentos que este paciente desperta nele e dos desejos que o paciente evoca nele, desejos inadequados a seu papel de médico.
 Para finalizar, vamos citar um exemplo bem simples. Uma médica ginecologista de 28 anos atende uma paciente de 58 anos que ensaia falar sobre sua vida sexual. A paciente revela vergonha em abordar o assunto. Desenvolve-se uma formalidade na relação. Uma vergonha mútua, um constrangimento. A médica percebe que ela mesma também está constrangida em aprofundar essas questões. A paciente, dá-se conta a médica, lembra sua mãe também uma mulher de mais de cinqüenta anos. Dá-se conta que ela ali não é a filha a não querer falar com sua mãe sobre como anda sua vida sexual (contratransferência). Ela é uma ginecologista, assume a identidade de médica na relação e sente-se, a partir de então, bem mais a vontade para conversar sobre a vida  íntima da paciente.

 

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